Um pouco sobre o perdão

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 —Duas vezes em menos de dois dias. Deve ser algum tipo de recorde —digo, para Odin.

O escritório continua o mesmo, tal qual a expressão de Odin, que manteve-se levemente risonha. A única diferença, porém, é que, em nossas frentes há 3 copos de chá. Hibisco, a julgar pela aparência e pelo odor.

Eu me sento na ponta esquerda. Ao meu lado senta-se Clarisse, e, na ponta direita, Midas, que olha para os seus pés, os quais estão balançando de forma nervosa.

—Já tivemos casos piores. Todavia, nunca um caso tão excêntrico quanto o de vocês. É interessante, pois não é uma coisa que eu havia previsto. Bem, eu quero dizer, Loki não é a pessoa mais confiável do mundo, mas não imaginava que ele vos obrigaria a fazer tal coisa —responde o Deus, com um tom alegre na voz, como se estivesse curtindo —Vocês sabem, eu preferiria não dar punição nenhuma, mas são às regras. Se eu não der para vocês, daqui a pouco este lugar virará uma Escola de Ensino médio qualquer —continua.

Clarisse dá um resmungo sôfrego, que, basicamente, resume o meu sentimento nesse momento. Quem mandou aquela cobra foi Midas! Nós não tivemos nada a ver com isso, mas pagaremos o pato. Quer dizer, porra, é uma cobra venenosa! Quem deixou ele trazer aquilo para cá?

—Para começar, vocês terão que construir um texto onde me mostrarão quais às melhores formas de se chegar em Valhalla.

Midas dá um resmungo irritado. Você mereceu, seu filho da puta, penso em dizer, mas fica só nos pensamentos, de uma forma ou de outra.

—Vocês não poderão voltar ao dormitório até que concluam a pesquisa. Durante este tempo, viverão na biblioteca. Terão 1 semana para que seja concluído. Posto isso, não poderão participar de atividades extra curriculares que não sejam ministradas pelos professores ou pelos deuses do Panteão. Ressalvo que não poderão participar de quaisquer atividades que tenham a ver com Loki, para que não ocorra nenhum acidente posterior. Estamos entendidos? —questiona.

Eu e Clarisse lançamos um olhar fulminante para Midas, que dá um sorrisinho de desculpas. Obrigado por estragar minha vida, seu filho da puta.

★★★

—Chegamos no inferno mais cedo —digo, enquanto passo o dedo pela bancada de madeira.

Um tufo de pó gruda-se no meu dedo. Esse lugar não deve ser limpado há anos. Às camas estão arrumadas, ao menos. Todavia, imagino que devem estar arrumadas há anos também.

—Jesus —fala Clarisse.

—Creio que ele não exista, considerando que estamos em Asgard, que é o lar dos deuses nórdicos —retruco.

Estamos em um cômodo anexo a biblioteca, uma sala de detenção. Há 3 camas de ferro, coladas nas paredes. Além das camas, têm uma bancada de madeira com várias e várias folhas de papel amarelado. Se este lugar fosse higienizado frequentemente seria melhor que os dormitórios gerais. Afinal, tem um banheiro e uma escrivaninha, já é melhor do que a maioria dos dormitórios.

O cheiro de mofo irrita minhas narinas. Às paredes são de madeira, não de concreto liso. As pequenas toras que compõem a parede estão caindo, deixando à vista o cimento e a cola de madeira.

Não sei para qual finalidade este cômodo foi construído. Com certeza não é um quarto de detenção, visto que é luxuoso demais para isso. Também não é um quarto para convidados especiais, pois, além de ser longe da construção principal, há quartos melhores nos aposentos dos Deuses. Hermes fareja o quarto todo, sentindo algum cheiro que é especial para ele, mas inútil para mim. Até onde sei.

Midas se vira para nós e abre a boca.

—Eu só queria pe... —começa.

—Vá se foder! Não queremos suas desculpas. Olhe a merda que fez. Você entende? Você quase matou Andros! Porra, nem pra ser o Tiago! Eu até te entenderia se fosse ele, mas, Andros? Porra! —interrompo, xingando-o.

Consigo ver a fúria em seus olhos. O discurso pode parecer clichê, mas é a pura verdade. Sua boca se contrai para baixo e ele morde o lábio de forma intensa. Sua mão se fecha em um punho. Consigo ver seus tendões. Definitivamente ele tem vontade, todavia, nunca me bateria. Eu ainda tenho meu cajado, e ele viu o que fiz com Tiago. E ainda foi de forma desintencional. Imagina o que eu faria com ele de forma premeditada. Seria meu primeiro assassinato.

—Você errou, Midas. Errou feio. É difícil manter a confiança. Foi tentativa de homicídio, Midas. A sua sorte é que estamos em Asgard e não precisa se preocupar com a vida de Andros. Você ao menos pensou o que aconteceria com você se estivéssemos no mundo real? A esta altura você já estaria em algum centro de detenção juvenil —completa Clarisse —Você nos meteu nisso sem o nosso consentimento. E agora estamos aqui, neste fim de mundo. Literalmente falando.

Midas dá uma risada frouxa, envergonhada. Ele sabe que está errado. Porra, ele quase matou o cara! Com esta idade, já deveria saber que isso não é uma coisa que se faça.

—Poderia ser pior. Odin sabe que vocês querem ir para Valhalla. Pelo menos ele deu uma forcinha —acalma.

Bem, nisso ele está certo. Agora, como o Deus poderia saber? É, a resposta está clara, é um Deus. Então, se ele quer nos ajudar... isso significa que eu posso encontrar meus pais? E, se eles estão em Valhalla, isso significa que morreram em batalha?

Vejo que Clarisse também não tinha pensado por este lado. A garota me olha, animada. Mal consigo imaginar o que passa pela sua cabeça.

—Midas, você errou, e espero que saiba disso. Errou feio, mas é perdoável.

—Perdoável? Ele é um assassino, Clarisse! —exclamo.

A menina me lança um olhar que diz "Me ajude a te ajudar". Clarisse não pensa. Hoje foi Andros, amanhã pode ser um de nós.

Como é perceptível, eu nunca foi de perdoar facilmente. Quando era menor, às pessoas me enganavam, e eu perdoava todo mundo, sem triagem. Não foi uma experiência boa, e, hoje, para conseguir meu perdão, é necessário merecer.

—Sávio, eu tenho certeza absoluta que você errou muitas vezes antes de chegar aqui. E as pessoas te perdoavam. Dê uma chance. Ao menos tente.

É uma escolha difícil. Um lado da minha mente quer que eu o perdoe, para não perder uma amizade. O outro lado diz que assassinos não têm perdão, e que eu serei a próxima vítima.

—Midas, eu não posso te perdoar agora. Tenho que lidar internamente com esse fato. Me convença de que você pode ser perdoado, que merece minha confiança. Eu já fui muito enganado nessa vida, não quero quebrar a cara novamente.

Clarisse dá um suspiro aliviado. Antes que Midas possa responder, às luzes do quarto se apagam.

—O que houve? —questiono, em voz alta.

A garota dá um suspiro e Hermes, visivelmente agitado, dá um latido esganiçado.

—Temos horário para dormir. Acabou de dar a meia noite, é quando às luzes se apagam nos dormitórios. Não tínhamos isso antes. É questão de hábito. E, bem, só se passaram alguns dias, de qualquer modo —diz a garota —Amanhã é que às coisas começam de verdade. Não vai ser fácil chegar até lá, eu imagino. Mas às coisas ficarão bem mais divertidas.

É o que eu espero, para ser sincero. Colocar minha vida em risco em troca de um pouquinho e miserável tempo de diversão.

Um deus à sua portaOnde histórias criam vida. Descubra agora