Lili

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3 de julho de 2015


Todas as manhãs, leio cartas de amor escritas para outra mulher. Nós duas
temos muito em comum: os olhos cor de esmeralda e o mesmo tom de loiro no cabelo. Também temos a mesma risada: discreta no início, mas que se torna mais alta quando estamos na companhia das pessoas que amamos. Quando ela sorri, ergue o canto direito da boca, exatamente como eu.
Encontrei as cartas na lixeira, dentro de uma caixa de metal em formato de
coração. Centenas delas. Algumas longas, outras mais curtas; algumas felizes,
outras incrivelmente tristes. Pelas datas, são muito antigas. Bem mais velhas do que eu. Algumas assinadas por KB, e outras, por HB.
Imaginei como meu pai se sentiria se soubesse que mamãe havia jogado tudo fora.
Mas, ultimamente, tem sido difícil para mim imaginar que ela já foi como
aquela carta.
Inteira.
Completa.
Parte de algo esplêndido.
Agora, ela parecia ser exatamente o oposto.
Acabada.
Incompleta.
Sozinha o tempo todo.
Depois que meu pai morreu, mamãe se tornou uma vadia. Não existe modo
mais educado de dizer isso. Não foi de uma hora para outra, apesar de a Srta.Jackson — a vizinha do final da rua — ter espalhado para um monte de gente
que minha mãe abria as pernas para todo mundo antes mesmo que meu pai nos deixasse. Eu sabia que não era verdade, pois nunca me esqueci de como ela olhava para ele quando eu era criança. Era como se ele fosse o único homem na
face da Terra. Sempre que ele tinha que sair bem cedo para trabalhar, a mesa
do café já estava posta, e o almoço, pronto, para ele levar. Ela até preparava uns
lanchinhos, porque meu pai vivia reclamando que sentia fome entre as refeições,
e mamãe sempre se preocupava em fazer com que ele se alimentasse bem.
Papai era poeta e dava aulas em uma universidade que ficava a uma hora da
nossa casa. Não foi surpresa descobrir que eles trocavam cartas de amor.
Palavras eram o ponto forte dele, sua grande vantagem. E mesmo não sendo tão
boa quanto o marido, minha mãe conseguia expressar tudo o que sentia em cada
carta que escrevia.
De manhã, quando ele saía de casa, ela cantarolava e sorria enquanto
limpava a casa e me arrumava. E falava dele, dizendo o quanto o amava, como
sentia sua falta e que escreveria uma carta de amor antes que ele voltasse, à
noite. Quando ele chegava em casa, mamãe sempre o servia com duas taças de
vinho, e então era ele quem cantarolava a música favorita dos dois e beijava a
mão dela. Eles riam juntos e cochichavam como adolescentes que estão vivendo
seu primeiro amor.
— Você é meu amor eterno, Kyle Bailey — dizia ela, enquanto o beijava.
— Você é meu amor eterno, Hannah Bailey — respondia ele, girando-a em
seus braços.
O amor dos dois era capaz de provocar inveja até nos contos de fada.
Quando papai morreu, naquele dia abafado de agosto, uma parte de minha
mãe também se foi. Lembro-me de ter lido um romance em que o autor dizia
algo do tipo: “Nenhuma alma gêmea deixa esse mundo sozinha. Ela sempre leva
consigo um pedaço de sua outra metade.” Odiei aquilo, pois sabia que era
verdade. Minha mãe ficou enclausurada em casa por meses. Eu a obrigava a se
alimentar todos os dias, na esperança de que ela não definhasse de tanta
tristeza. Nunca a tinha visto chorar até aquele momento. Não demonstrava
minhas emoções quando estava perto dela, pois sabia que isso só a deixaria mais
triste.
Eu já chorava o suficiente quando ficava sozinha.
Quando finalmente saiu da cama, foi para ir à igreja. Eu a acompanhei
durante algumas semanas. Lembro-me de me sentir totalmente perdida, aos 12
anos, sentada no banco de uma paróquia. Nunca fomos uma família religiosa, só
rezávamos quando algo de ruim acontecia. Nossas visitas à igreja não duraram
muito tempo, pois mamãe chamou Deus de mentiroso e desrespeitou os fiéis,
dizendo que deveriam parar de perder tempo, de ser enganados com esperanças
vazias e inúteis de uma terra prometida.
O pastor Reece pediu que ficássemos algum tempo sem aparecer. Pelo
menos até as coisas se acalmarem.
Até então, nunca tinha passado pela minha cabeça que alguém pudesse ser
banido de um templo sagrado. Quando o pastor dizia “venham todos”, acho que
não estava se referindo a “todos” de fato.
Recentemente, mamãe adotou outro passatempo: homens diferentes em
curtos intervalos de tempo. Uns para dormir, outros para ajudar a pagar as
contas. E há ainda aqueles que ela gosta de manter por perto em momentos desolidão, ou também porque lembram meu pai. Alguns ela até chama de Kyle.
Agora à noite havia um carro parado em frente a nossa casa. Azul-escuro, com
alguns cromados e bancos de couro vermelho. Dentro dele, um homem estava
sentado com um charuto na boca, minha mãe no colo. Pareciam ter acabado de
sair dos anos 1960. Ela ria baixinho enquanto ele sussurrava algo em seu ouvido,
mas não era o mesmo tipo de risada da época do papai.
Era vazia, frívola e triste.
Dei uma olhada na rua e vi a Srta. Jackson cercada de outras fofoqueiras,
apontando para mamãe e o homem da semana. Queria ouvir o que elas diziam e
mandar que ficassem quietas, mas elas estavam na calçada oposta. Até mesmo
as crianças que brincavam de bola na rua, driblando alguns gravetos,
observavam os dois com os olhos arregalados.
Carros caros como aquele nunca transitavam numa rua como a nossa. Tentei
convencer minha mãe a se mudar para uma vizinhança melhor, mas ela se
recusou. Na época, achei que era porque ela e papai tinham comprado a casa
juntos.
Talvez ela não tivesse se esquecido completamente dele.
O homem soltou a fumaça do charuto no rosto dela, e os dois riram. Mamãe
usava seu melhor vestido: amarelo, tomara-que-caia, com cintura justa, saia
rodada. A maquiagem era tão pesada que a fazia parecer ter 30 e poucos anos,
em vez de 50. Ela era bonita sem toda aquela porcaria na cara, mas dizia que se
maquiar transformava uma menina em mulher. O colar de pérolas era da minha
avó, Betty. Eu nunca a vi usar aquele colar com um estranho, e não entendi o
porquê de ela fazer isso agora.
Os dois olharam na minha direção, e me escondi na varanda, de onde
continuei espiando-os.
— Lil, se você está tentando se esconder, pelo menos faça isso direito. Venha
aqui conhecer meu novo amigo — falou minha mãe bem alto.
Saí de trás da pilastra e caminhei na direção dos dois. O homem soprou a
fumaça mais uma vez e, conforme eu me aproximava, observando seus cabelos
grisalhos e seus olhos azul-escuros, o cheiro do charuto chegou ao meu nariz.
— Richard, esta é a minha filha, Elizabeth. Mas todo mundo a chama de Liz.
Richard me olhou de cima a baixo, o que fez com que eu me sentisse um
objeto. Ele me analisou como se eu fosse uma boneca de porcelana prestes a se
quebrar. Tentei disfarçar o desconforto, mas não consegui, então baixei os olhos.
— Como vai, Lil?
— Lili — corrigi, ainda olhando para o chão. — Só os mais íntimos me
chamam de Lil.
— Lil, isso não é jeito de falar! — repreendeu minha mãe, franzindo a testa e
deixando as rugas à mostra. Ela não teria falado dessa forma se soubesse que isso
acentuava as linhas de expressão em seu rosto. Eu odiava quando um homem
novo aparecia e ela sempre escolhia ficar do lado dele e não do meu.
— Tudo bem, Hannah. Além do mais, ela está certa. Leva tempo para
conhecermos alguém. E apelidos têm que ser merecidos. Não são oferecidos a
troco de nada.
Havia algo nojento na forma como Richard me encarava e baforava seu charuto. Eu usava uma calça jeans larga, com uma camiseta bem grande, mas,
mesmo assim, me sentia exposta.
— A gente está indo à cidade comer alguma coisa. Quer ir? — convidou ele.
— Emma ainda está dormindo — recusei. Olhei em direção à casa, onde
minha menininha estava deitada num sofá-cama. Nós duas já o dividíamos há
um bom tempo, desde que viemos para a casa da minha mãe.
Ela não foi a única que perdeu o amor de sua vida.
Eu tinha esperanças de não acabar como ela.
Esperava ficar só na fase da tristeza.
Steven tinha morrido há um ano, e eu ainda tinha dificuldade para respirar.
Emma e eu morávamos em Meadows Creek, no Wisconsin, nossa casa de
verdade. O lugar foi reformado, e nós o transformamos em um lar. Foi ali que eu
e Steven nos apaixonamos, brigamos e fizemos as pazes inúmeras vezes.
Bastava a nossa presença para tornar a casa um lugar aconchegante. Mas,
depois que Steven se foi, parecia que uma nuvem escura pairava sobre ela.
Foi no hall de entrada que ficamos juntos pela última vez. Seu braço envolvia
minha cintura, e nós achávamos que nos lembraríamos daquele instante para
sempre.
Mas o “para sempre” foi bem mais curto do que todos imaginavam.
Durante muito tempo, a vida seguiu seu curso, até que, um dia, tudo ruiu.
Eu me senti sufocada pelas lembranças e pela tristeza, e então corri para a
casa da minha mãe.
Voltar ao nosso lar significava encarar a verdade: ele não estava mais entre
nós. Por mais de um ano, vivi um faz de conta, fingindo que ele tinha saído para
comprar leite e que voltaria a qualquer momento. Todas as noites, quando me
deitava, ficava do lado esquerdo da cama e fechava os olhos, imaginando que
Steven estava ali comigo.
Mas minha filha merecia mais do que isso. Minha pobre Emma precisava de
mais do que um sofá-cama, homens estranhos e vizinhos fofoqueiros dizendo
coisas que uma garotinha de 5 anos nunca deveria ouvir. Ela também precisava
de mim. Eu estava vagando pela escuridão, não era a mãe que ela merecia.
Enfrentar as lembranças do nosso lar talvez me trouxesse paz.
Voltei para dentro de casa e olhei para meu anjinho dormindo, seu peito
subindo e descendo em um ritmo perfeito. Nós duas temos muito em comum: as
covinhas na bochecha e o mesmo tom loiro no cabelo. Também temos a mesma
risada: discreta no início, mas que se torna mais alta quando estamos na
companhia das pessoas que amamos. Quando ela sorri, ergue o canto direito dos
lábios, exatamente como eu.
Mas tínhamos uma grande diferença.
Os olhos dela eram azuis como os dele.
Deitei-me ao lado de Emma, beijando suavemente seu nariz. Depois, peguei
a caixa no formato de coração e li mais uma carta. Já tinha lido aquela antes,
mas mesmo assim ela tocou minha alma.
Às vezes, eu fazia de conta que as cartas eram de Steven.
E sempre derramava algumas lágrimas.

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⏰ Última atualização: May 16, 2020 ⏰

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