"Tu é barulhenta, Ju".
Essa frase me perseguiu durante dias, apesar de ter soado inocente. Será que eu ronco enquanto durmo? Tudo bem que eu tive problemas com asma na infância, mas isso era passado e, se não fosse, Cláudio me avisaria, é um vira-lata bastante esperto, esse Cláudio.
E se Beatriz estivesse falando daquele dia? Fizemos muitos sons, sim, mas era um conjunto, uma união, um aglomerado de notas que de individual nada tinham, como poderia eu, somente eu, ser barulhenta?
Talvez ela estivesse se referindo às aulas de teclado. Toda quarta-feira, rigorosamente, depois da escola, íamos para a casa dela, que ficava à direita da terceira lombada, isso, a casa do portão preto, como ela sempre dizia, nessa ordem, desse jeito, decorado.
Aprender teclado nunca foi uma prioridade para mim, mas se tornou urgente quando Beatriz começou a desconfiar da minha suspeita dificuldade semanal em química orgânica. Beatriz foi bastante receptiva, como de costume, e logo topou me transformar na mais nova maior tecladista da história, enquanto eu reforçava que seria a segunda maior, pois o primeiro lugar lhe pertencia.
Uma vez, durante a nossa aula, deixei escapar que ela parecia realmente boa com os dedos. Foi estranho. Eu não sabia se ela gostava de meninas também, nunca havíamos tocado no assunto. Beatriz valorizava - digo, de verdade - os momentos carnais da vida, então falava no telefone apenas para marcar encontros presenciais, o que limitava a nossa comunicação. Mas, naquele momento, algo na reação dela me dizia que sim, ela havia percebido a ambiguidade não intencional presente na minha fala.
"Acho que sou mesmo", Beatriz disse após alguns segundos, mas eu não respondi. O quarto estaria em completo silêncio, se não fosse o vai-e-vem de nossas respirações em uníssono com o incessante pinga-pinga vindo da pia do banheiro, que, inclusive, já deveria ter sido consertada há tempos, pois atrapalhava na hora de dormir, Beatriz me disse.
Ainda não sabia exatamente o que dizer, mas Beatriz, depois de encarar seu teclado por não-sei-quantos-minutos (eu diria três, mas Beatriz insistiria no cinco, eu aposto, porque ela é mesmo uma teimosa), pareceu encontrar suas palavras:
"Música é sobre conexão, sabe, Ju? Quando o movimento se une ao querer, Ju, conecta. E quando conecta, e conecta mesmo, Ju, dá curto. E aí, boom, explode. E queima, Ju. Queima mesmo. Aí é música".
Eu definitivamente não sabia se Beatriz estava mesmo se referindo à música, mas eu queria descobrir. Eu não costumava encarar Beatriz nos olhos, porque é um castanho muito bonito e eu sempre me distraio, mas dessa vez foi diferente.
"Me mostra, então".
Beatriz foi certeira; sorriu, estendeu sua mão e abriu seu spotify no celular. Não me senti desapontada, mas curiosa. Segurei sua mão e acompanhei o ritmo de seu corpo. Para frente, para trás, perto, distante e então perto de novo. Não demos uma única palavra, mas, toda vez que nos tocávamos, eu entendia o que ela queria me dizer.
Não sei quanto tempo durou, mas sei que, no fim, estávamos jogadas na cama dela, suadas e ofegantes.Cada olhar conectava e cada troca de sorriso dava curto. Quando decidi levantar, Beatriz me segurou pelo braço e, boom, explodiu. Não demoraria muito para queimar, nós sabíamos. Nossas bocas clamavam por aquele momento.
E, desse jeito, no desejo de dois corpos que tanto se queriam, outra dança começava, sem previsões de término - talvez durasse a noite inteira. Muita fumaça preenchia o quarto e, naquele momento, eu e Beatriz éramos como fósforo e gasolina; não temíamos a explosão.
Um, dois, três dias se passaram, e aquilo permanecia na minha mente. "Tu é barulhenta, Ju". Ainda não fazia sentido. Na quarta-feira seguinte, fomos para a casa de Beatriz de novo, e foi aí que eu entendi.
O seu quarto me trazia vívidas lembranças e os sons do teclado não eram nada quando comparados com o som de sua voz. Quando ela me olhava, eu juro que podia ouvir as borboletas do meu estômago, tão ríspidas e inquietas que beiravam a crueldade, ameaçando voar para fora. Não sabia mais se o pinga-pinga vinha mesmo da pia quebrada ou do suor na minha testa. Bastava um toque, apenas um, e eu saberia que Beatriz era a responsável pela orquestra irregular que os batuques do meu peito formavam. Era isso, só podia ser. Precisava entender.
"Tu me ouve, Bia? Digo, eu sou mesmo barulhenta. Tu me ouve?"
Então, Beatriz sorriu, sorriu aliviada, como quem acaba de ser salvo.
"Eu te ouço, Ju. Sou barulhenta também. E eu meio que gosto disso".
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A poesia nada poética dos sons que ela fazia
Short StoryMini conto lésbico sobre Juliana e Beatriz, duas garotas barulhentas que tanto se queriam.