Coração de Cristal

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O relógio faz aquele tic-tac que em dias normais passaria despercebido, mas hoje não era um dia normal, e o tic-tac ensurdecia. Eu esperava por ele, esperava sua ligação. Era tarde, quase 3 da manhã, geralmente era por esse horário que me ligava frustrado com alguma briga de bar. Mas essa noite foi diferente, ele não ligou.

3h10 a campainha toca, ele estava lá fora, no frio, jaqueta de couro preta, unhas pintadas e cabelos molhados pela chuva, quase um cão abandonado. Senti pena. "Por que não entra e se seca?" Perguntei aflita, ele olhou pra mim, seus olhos queimavam, apesar do vento frio nos congelar. Estava chorando, eu podia dizer pelo vermelho típico que fica ao redor de nossos olhos, principalmente em olhos tão claros quanto os dele, azul como o mar. Pude ver sua dor apesar de seus cabelos encharcados caírem sobre seu rosto como uma cortina. "Aconteceu alguma coisa?" Sussurrei mais para mim do que para ele enquanto eu o conduzia para o sofá da sala. O cômodo estava em meia luz, apenas um abajur de chão ao lado do sofá estava aceso, o que nos proporcionava um clima pesado e sensual.

Ele parecia transtornado. Eramos amigos há anos, e eu sempre nutri esse sentimento platônico sem nem pensar em me declarar. Sabia muito bem como era seu jeito: bad boy, pinta de rock star, jaquetas de couro e harley davidson. Ele parecia tentar viver a vida com um ar de Jax Teller misturado com a doçura de um one direction. Controverso? Sim, acho que podemos o definir assim. Um paradoxo andarilho. Sempre bêbado quando precisa desabafar, duro de mais quando sóbrio para confiar em qualquer um. Eu apenas o amava.

Foram longos 15 minutos encarando o chão até que se pronunciasse: "sinto muito, eu não quis incomodar." Olhou direto para meus olhos e senti cada célula do meu corpo congelar. "Não precisa se desculpar, eu não estava fazendo nada de mais, também tenho sofrido com a insônia." Verdades em parte, mas não podia admitir que esperava ansiosamente por suas ligações todas as sextas desde que isso se tornou um habito seu. Quão miserável era minha situação?

Mais uma longa pausa em agonia e ansiedade. Ele exalava uísque e perfume amadeirado misturado com cigarros e um cheiro típico de bares. Eu podia dizer o que se passou até aqui, pois ele era previsível, mas deixei que ele tomasse coragem para começar seus lamentos a cerca da vida, do cosmo; despejar em mim toda aquela velha filosofia niilista da qual estou cansada de saber; ele nunca estava contente com nada.

"Eu pensei em, talvez, se você concordar, passar a noite aqui. Não há outro lugar ou alguém que me passe maior confiança que você, então, por favor, deixe que eu descase minha carcaça pesada e minha cabeça latente em seu sofá essa noite", quem eu poderia culpa pelo poetismo barato digno de Bukowski? Seu sol em aquário? Sua lua em câncer? Seu ascendente em leão? Seja o que for, é esse ar lírico, esse heterônimo que ele criou como se precisasse esconder seu verdadeiro eu atrás desse avatar que me deixou de quatro, completamente apaixonada desde o princípio.

"Não tem problema, pode passar a noite aqui. Vou buscar uma toalha e cobertores para você. Se quiser tomar um banho quente te mostro o banheiro..."

"Um banho seria bom." Sorriu melancolicamente me olhando por de trás da sua franja comprida. Como eu sobreviveria a essa noite sem nem se quer tocá-lo? Eu não sei!

Banho tomado, usando algumas roupas que eu costumava roubar de meu irmão mais velho, ele se encontrava deitado no sofá, já curado da embriaguez e completamente triste. Sentei ao seu lado e com ternura perguntei se ele estava disposto a falar. Apenas me olhou. Não disse nada, e em silêncio se levantou para sentar de joelhos à minha frente. Com as mãos em segurando as minhas disse lentamente: "Eu sofro em silêncio por décadas e você é a única que consegue me desvendar. Mas mesmo assim eu não posso ser egoísta ao ponto de me aproveitar desse momento para dizer o que toda sexta-feira, desde que nos encontramos naquela festa sem sentido na faculdade, tento te dizer. Fui fraco, sim! Fraco por não me conter, não me contentar com sua voz, com sua respiração do outro lado da linha, me acalmando e me dizendo que todo esse pessimismo me deixaria com gosto de limão e você não beijaria mais minha face se assim fosse."

Muito pouco do que ele falava fazia sentido, mas uma coisa era certa: ele estava, de alguma forma, se declarando. Um tanto quanto em choque, e com medo daquela velha sensação de borboletas na barriga me fazer vomitar, disse calmamente a ele: "amanhã, amanhã conversaremos." Ele pareceu um pouco perturbado com isso. " Não, na verdade, não creio que terei essa coragem amanhã, e não suporto mais sentir o fracasso a cada noite de não conseguir dizer três palavras que mal cabem em meu peito: Eu te amo! É isso, eu amo você e por muito tempo procurei desculpas esfarrapadas para não confessar isso. Não consigo mais afogar esse sentimento, ou eu tenho tudo ou eu não tenho nada! E isso significa que você pode e deve me rejeitar se assim for, mas que se por alguns segundos, se algum dia você puder me amar de volta, se houver um fio de esperança com o qual eu posso me amarar para sempre com você, então não hesite em correr para mim."

Uau! Eu, a essa altura, já devia estar acostumada com seu discurso shakespeareano apaixonado, porém uma declaração dessa me quebrou as pernas. Não tinha jeito, eu estava completamente vulnerável a ele, sempre estive. Com aqueles olhos de oceano ele me encarava ansiando por uma resposta, por menor que fosse. Mal consegui formular uma frase, tamanho foi o choque.

Lembrei que atitudes valem mais que palavras, principalmente para ele.

Com toque gentil fiz com que se levantasse. Atônito, ele ainda aguardava um pronunciamento, talvez um soneto complementar ao dele. Reservei-me ao ato mais esperado das minhas expectativas relacionadas a ele. Sem dizer sequer uma palavra o beijei vagarosamente, numa primeira instância, mas assim que seus braços me puxaram com tamanha vontade contra seu corpo, tão alto que tive que me colocar nas pontas dos pés, como uma bailaria, o beijo se tornou selvagem, erótico, desesperado, como se estivéssemos mortos de sede e apenas na boca um do outro encontrássemos água cristalina.

O beijo se intensificou e não demorou muito para nossas mão passearem pelos nossos corpos. Ele estava tão quente, provavelmente por causa do banho demorado, seu beijo era desesperado, como se fosse algo que sonhasse há muito tempo em fazer. Correspondia com nervosismo seus movimentos, pois não conseguia racionalizar sobre nada. Só havia esse grande vazio em minha mente e essa sensação de que meu coração explodiria.

"Eu preciso de você! Eu preciso de você para me sentir vivo!" Ele sussurrava em meu ouvido as palavras que eu mesma mal podia interpretar.

As circunstâncias foram aos poucos mudando, nossas roupas já não estavam mais entre nós, mas sim jogadas pelo na bela tapeçaria herdada de minha avó. Seus braços, fortes como esperado de alguém que trabalha em uma mecânica especializada em motos, me envolveram como se eu fosse uma boneca de porcelana. O cheiro de incenso que eu havia acendido minutos antes invadia cada molécula de ar no cômodo. Assim eu me encontrava: totalmente anestesiada pela cena, completamente entregue ao homem que beijava cada parte do meu corpo com tanto ardor que me senti Vênus adora por um sacerdote devoto.

Ele respirava ofegante quando finalmente me penetrou. Algo que eu fantasiei e ansiei por tanto tempo: sentir seu calor em meu ventre, senti seus beijos em lugares que ninguém nunca foi capaz de tocar antes. Era como se me conhecesse de corpo e alma, como se soubesse muito bem o que eu queria sem que quer dissesse uma única palavra.

Gentilmente me deitou no sofá enquanto seus movimentos intensificaram até explodir em um gemido baixo e olhos brilhantes. Ele sorriu e eu me vi completamente sem chão. Foi nesse momento particular, íntimo e específico que me dei conta de que havia entregue, ali mesmo, no calor dos incenso e adoração à Vênus, todo o meu coração de cristal a um homem que provavelmente o quebraria em pedaços como que por acidente, certamente tropeçando em erros e assistindo se espatifar no chão sem reação, apenas balbuciando desculpas em meio ao choro desenfreado e promessas de mudanças.

Mas minha escolha já estava muito bem calcificada e fundamentada em toda a estupidez e falta de raciocínio que nos acomete o amor.

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