Capítulo 5: Aniversário de quem?

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Harry vestiu uma camiseta cinza e uma calça de moletom de coloração laranja terrosa, além das habituais pantufas caricatas em formato de panda nos pés. Ao voltar para a sala de estar, se deparou com Sam deitado no chão, atirando uma bola anti-estresse contra a parede repetidamente, e parecia ter dominado a habilidade pois a bola voltava para suas mãos como se tivesse vontade própria.

Harry pegou a bola no ar e sentou-se no braço do sofá, olhando nos olhos de Sam, que retribuiu a ação, perdendo-se no infinito das íris um do outro. Abruptamente, Harry desviou o olhar, como se estivesse perdido em seus pensamentos, e após um momento parado com essa expressão curiosa, disse:

-Que tal fazermos um bolo?

-É aniversário de quem? - Brincou Sam.

-De alguém ao redor do mundo.

Sam hesitou, mas na ânsia de ocupar seu tempo ocioso, não viu motivos para não aceitar a proposta.

Dirigindo-se até a cozinha, Harry começou a separar os ingredientes, demonstrando que já tinha em mente qual bolo faria, então Sam apenas acatou, pegando a batedeira no armário e colocando-a sobre a bancada para preparar a massa. Farinha, ovos, leite, manteiga, fermento, açúcar e chocolate a postos, começaram a trabalhar.

-Pega o copo medidor no armário, por favor. - Disse Harry, amarrando a corda do avental azul no corpo.

Sam pegou prontamente o copo, e começou a medir os líquidos enquanto Harry fazia o mesmo com os sólidos. Começaram a misturar tudo na batedeira, conforme Harry ditava a ordem de adição, sem precisar ler a receita, que já tinha decorada na cabeça.

Mesmo com o barulho grave da batedeira, Sam tentou iniciar um assunto com Harry:

-Você nunca me contou como começou a cozinhar.

-Tudo o que eu sei aprendi sozinho. Eu era um adolescente um pouco, digamos, desocupado - Disse, rindo da própria fala. - E um dia eu simplesmente decidi me arriscar na cozinha, fazendo cookies, e foi um desastre. Eu não tinha base nenhuma, então só peguei a primeira receita que vi na internet e comecei a fazer. Até hoje não sei como não coloquei fogo na casa, ficaram horríveis, mas eu comi tudo mesmo assim, e morri de dor de barriga depois. Mas como deu tudo errado, eu tentei de novo, e de novo, até fazer o cookie perfeito. E não foi nada fácil, mas foi divertido. Depois eu comecei a aprender outras receitas, e nunca mais parei.

Sam ouvia atentamente, e a cada novo detalhe da história se derretia mais pelo namorado. Só de imaginar como teria sido se tivessem se conhecido nessa idade, e como teriam tido mais tempo para acumular boas memórias. Harry era, de fato, o amor da sua vida.

Com a massa do bolo no forno, era hora de fazer a cobertura. Seria um creme simples de chocolate. Sam foi até a sala e ligou a televisão para acompanhar as notícias mais recentes, e a repercussão da intensificação do isolamento estava causando reações adversas nos cidadãos do país. Um grupo, mais desinformado, defendia o fim da quarentena, alegando que a economia poderia ser muito afetada com isso, em contraste com o outro grupo, que concordava absolutamente com a prorrogação da quarentena e sua maior rigidez. Sam e Harry faziam parte deste segundo grupo, ao contrário de Rose, do outro lado do corredor, que desacreditava das fontes seguras e preferia se informar por meios escusos e sem credibilidade, ainda que para ela fossem esses os mais sensatos, uma verdadeira conspiracionista.

Com o bolo já assado, Harry desenformou-o e cobriu-o com o creme de chocolate. Pegando uma vela que tinha restado de um aniversário passado, colocou-a sobre o bolo e acenderam-na. Os dois sentaram-se na mesa ao redor do bolo, e antes que começassem a comer, Sam deu a ordem para a assistente eletrônica:

-Alexa, toque Birthday, da Katy Perry.

E ainda antes de comer, fizeram um brinde com os garfos contendo os pedaços de bolo, dizendo:

-Parabéns para alguém!

E se deliciaram, enfim, com a sobremesa.

Sam olhava para Harry, separados pela mesa, e começou a esfregar seu pé coberto por uma meia listrada delicadamente na panturrilha de Harry, não na intenção de incitar uma interação sexual, mas de acariciá-lo com brandura, enquanto apreciava as covinhas que surgiam em seu rosto quando sorria, a forma como seus olhos diminuíam a ponto de parecerem duas pequenas sementes e com que o cabelo lhe caía sobre a face e movimentava-o para trás das orelhas em um gesto mecânico. O véu de amor que cobria o olhar de Sam disfarçava qualquer defeito que pudesse ser evidente naquele rosto angelical.

Notando o olhar apaixonado de Sam, Harry apoiou o queixo nas mãos com os cotovelos na mesa, ficando ainda mais adorável, e Sam reconheceu naquele semblante uma inocência e uma pureza quase infantis, embora Harry fosse só dois anos mais novo que ele. Essa fisionomia terna lhe fez pensar novamente na história que contara mais cedo, sobre sua adolescência e sua obsessão por cookies, acabando por remeter ao momento em que se conheceram.

Sam tinha 20 anos na época, e Harry, por consequência, tinha acabado de completar 18 primaveras. Foi em uma terça-feira nublada, no parque da cidade, Harry lendo um livro despreocupadamente sentado em um banco de madeira, quando Sam se aproximou e perguntou se o lugar ao seu lado estava reservado. Harry abriu espaço para que ele sentasse, trajava uma jaqueta de couro marrom com a gola de plumas brancas por cima de uma camiseta branca com a estampa de uma mulher no estilo pin-up envolta em formas geométricas nas cores primárias azul, amarelo e vermelho, uma calça jeans e sapatos de lenhador no mesmo tom próximo ao bege da jaqueta. Tomava um café e segurava outro copo com latte para alguém que aparentemente esperava.chegar. Harry continuou lendo o livro por mais três quartos de hora, quando decidiu fechar o manuscrito e conversar com Sam, que olhava para a tela do celular, perplexo.

-Levou um bolo, foi?

-Aparentemente sim. Você gosta de latte? - Disse Sam, oferecendo a bebida.

-É minha bebida favorita, depois de chá de hibisco com maçã.

Naquele fim de tarde, tomaram seus cafés e observaram juntos o pôr do sol, e dali nasceria um lindo relacionamento.

Agora na casa de Harry, Sam sentia-se nostálgico, não só pelo café, como pela liberdade de poder observar o pôr do sol no parque. O mundo tinha virado de cabeça para baixo, e a única coisa que prendia seus pés ao chão, mantendo sua sanidade, era aquele ótimo cozinheiro de covinhas salientes.

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