Capítulo 1

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Eleanor

Quando o garçom do Barracuda disse que tinha uma carta para mim, achei que tivesse errado de mesa. Depois, considerei a possibilidade de ter um admirador secreto no bar que frequentava todas as quartas-feiras desde que me entendia por adulta – já não era sem tempo! Assim que reconheci o garrancho que desenhou meu nome no papel pardo do envelope, no entanto, descartei ambas as possibilidades.

Não era engano nem admirador secreto.

Tempos atrás, o emaranhado de rabiscos mal feitos teria me deixado feliz, de coração batendo forte, mãos suando, boca seca, todas as previsíveis reações de uma pessoa apaixonada. Agora, eu só tinha vontade de vomitar – e de me jogar na frente de um ônibus desgovernado, porque meu coração meio que estava disparado, minhas mãos suando, minha boca secando...

Manoela notou minha careta de desgosto com a rapidez que se espera de uma melhor amiga atenta.

— Pela expressão de quem comeu e não gostou, já sei que não tem um vale gim-tônica aí — anunciou, mexendo no fundo de sua caipirinha arruinada pelo excesso de gelo.

Balancei a cabeça.

— Provavelmente é uma bomba que eu não vou saber desarmar — respondi, meus olhos presos naquela curva horrenda que ele fez no "E" de "Eleanor".

Era a mesma curva horrenda do mesmo "E" horrendo que ele fazia nas cartas que me enviava quando éramos adolescentes. Eu o obrigava a fazer isso porque achava a coisa mais incrível do mundo receber cartas. Ele e Manoela eram meus únicos amigos; eu gostava de obrigá-los a fazer coisas que não queriam para me agradar. E eles quase sempre faziam. As cartas de Enrico, contudo, não tinham muito conteúdo, só um "oi, tudo bem? Você é muito legal, obrigado por existir". Uma vez ele tentou escrever uma poesia, mas sucedeu horrivelmente na tarefa. Não se rima "beber" com "bebês".

Nunca.

Quando a amizade se tornou namoro, namoro sério mesmo, ele parou de escrever cartas. E eu nunca mais vi "Eleanor" escrito de uma forma tão feia, mas tão bonita, outra vez. Até então.

Manoela bateu o copo de caipirinha na mesa, chamando a minha atenção.

— Você quer parar de encarar esse envelope como se ele fosse te esganar a qualquer momento? Abre essa porcaria de uma vez! Estou curiosa.

Balancei a cabeça em negação de novo.

— Por que não?

— Não quero saber o que o remetente tem a me dizer.

— E quem é... — Ela parou no meio da frase.

Sabia que apenas uma pessoa no mundo poderia me deixar transtornada ao enviar um envelope de papel pardo aleatório, dadas as circunstâncias em que se encontrava e as circunstâncias do término do nosso relacionamento. Manoela levou as mãos à boca, os olhos arregalados pelo choque, então começou a rir.

— Não tem graça, Manu.

Ela ainda levou alguns segundos para parar de rir.

— Desculpe, mas é que... — Minha amiga se debruçou sobre a mesa do bar, a fim de encurtar a distância entre nós, e enfim sussurrou: — Você acaba de receber uma carta de um criminoso que fugiu da cadeia há uns cinco dias?! Se essa não é a coisa mais emocionante que aconteceu com você desde que... Bem, seu ex-namorado foi preso, eu não sei qual é.

— Emocionante é a última palavra que eu escolheria para definir isso. — Balancei o envelope na frente do nariz empinado dela.

Manu voltou a se encostar na cadeira, cruzou os braços e abriu um sorriso presunçoso.

— Vamos abrir, ler, rir da cara dele um pouco, jogar no lixo, porque a polícia não vai querer achar que você sabe onde aquele sociopata está, pedir mais uma caipirinha e ir embora para casa, dormir tranquilamente com a cabeça no travesseiro, sabendo que você não tem sei lá quantos anos de cadeia para cumprir. Diferente de certas pessoas por aí...

Respirei fundo, o papel começando a ficar úmido entre os meus dedos. Ela tinha razão. Eu precisava abrir, ler, rir da cara dele um pouco – ou chorar em posição fetal, dependendo do conteúdo – e tocar a vida. Era muito simples. Não poderia deixar que uma carta qualquer me abalasse, muito embora viesse de alguém como Enrico. Era só problema, mas eu poderia lidar.

Decidida, abri o envelope e o virei em cima da mesa. Caíram uma folha de caderno velha e uma coisinha preta que se parecia muito com um pen drive.

Peguei a folha enquanto Manu passava a examinar a coisinha preta de perto.


Ei, Nonô.


— Ele me chamou de Nonô — resmunguei.

Odiava aquele apelido idiota.

Meu nome era Eleanor. Cuidadosamente escolhido pelo meu pai, fã número um dos Beatles e exímio apreciador de Eleanor Rigby. Gostava tanto do simbolismo familiar por trás do meu nome que não aceitava que me dessem apelidos. Especialmente Nonô. Enrico sabia disso. E sabia que não teria a minha atenção se não começasse exatamente daquele jeito.

— Você é muito esperto, Enrico, muito esperto — conhecedora do fato, Manu comentou; os olhos cerrados no pen drive.


Você é a única pessoa do mundo em quem confio o suficiente para pedir ajuda. Tem um pen drive neste envelope. Ele contém a verdade sobre os crimes que me levaram à prisão, mas que não cometi. Preciso que você o leve até Brasília, para o procurador da República Conrado Mansur. Ele saberá o que fazer com o conteúdo do pen drive. Minha vida e minha liberdade estão nas suas mãos a partir de agora. Sei que provavelmente me odeia, mas, se o que tivemos significou algo no passado, por favor, acredite em mim. Eu acredito em você.

Você é muito legal. Obrigado por existir.

Enrico.

P.S.: Manu, conto com você caso Nonô escolha queimar esta carta em vez de me ajudar.

Era só o que faltava!Where stories live. Discover now