Prólogo

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Relâmpagos riscavam o céu de chumbo. Pesada chuva desabava pelas ruas e becos da cidade.

Uma criança maltrapilha. Um menino, saltitava entre as poças, apesar dos andrajos que usava e da visível miséria, parecia estar realmente se divertindo.

Seu nome, ninguém nunca soube, nem se preocupou em saber, tinha um para cada dia de semana quando ia vender bala no semáforo ou ajudar a carregar peso na feira. Chamavam-no do que surgisse na hora; "Menino", "moleque", "peste", "desgraça". Desse último ele não gostava muito, ficava logo encasquetado e reagia, o que acabava lhe valendo uma mãozada no rosto e perda de mais um bico, ou até, de alguns dentes.

Vez ou outra, que o nomeavam pelo apelido que recebera em tenra infância. Darinho.

Qualquer um poderia se perguntar "mas por que, tão miserável criatura, se encontra em tal estado de felicidade ?".

É que aquela criança tinha um segredo, uma coisa, um tino, do qual ninguém sabia, e só aparecia em dias de chuva, ou, quando ele estava suficientemente perto da água.

Como naquela noite, quando pulava entre as poças, as gotas de água aspergiam ao seu redor, então, ficavam subitamente muito lentas, pairando no ar como pequenos cristais, a espera de alguma deliberação de seu jovem mestre.

E ele as tomava nas mãos, às vezes dava-lhes petelecos, e elas se lançavam fortes como projeteis, a um alvo determinado. Várias vezes o menino rira até quase se mijar. Atingindo as nádegas das pessoas que passavam perto de si, na feira ou na avenida central. Elas pulavam, xingavam, algumas tomavam tamanho susto que caiam sentadas no chão, sem identificar o que as tinha atingido.

Naquela noite não seria diferente. Ele estava em sua dança, espalhando suas pedrinhas diferenciadas, perfurando paredes, janelas, vez ou outra atingindo algum rabo desavisado.

Não contara a seus companheiros de beco, tinha medo do que eles viriam a lhe dizer ou querer fazer com ele se descobrissem seus "poderes". Sua falecida avó, única parente que se dera ao trabalho de cria-lo dizia-lhe sempre;

"Coração dos outros, é terra que ninguém conhece".

Por isso preferia ficar só quando chovia, mesmo que isso lhe rendesse uma gripe pesada depois.

Estava ele passando por uma rua naquela noite, quando escutou algo. Eram murmúrios, baixos e apressados, vinham de uma viela lateral.

A dupla de grandalhões, vestidos em uniformes de alguma escola próxima, atormentavam um menino menor, o qual, desesperadamente, abraçava uma mochila, já bastante puída e desbotada. Estavam os três escondidos sob uma espécie de toldo.

-Bora meu irmão! – Dessa vez um dos grandalhões gritou, dando um empurrão no ombro do menor.

-Eu falei que eu não tenho! Já falei!- Havia lágrimas nos olhos do menino menor. Lágrimas. Isso deu uma ideia a Darinho.

Pulando em uma poça próxima, espalhou a água a sua volta, reuniu cinco delas em uma gota maior, e arremessou na cabeça de um dos grandões.

O rapaz pendeu rapidamente para frente, se virou, nessa hora, Darinho se escondeu atrás de um cesto de lixo.

-Que porra foi...?- Ele chegou ao limiar da viela, não vendo nada, voltou para a proteção do toldo e para sua inglória empreitada de furtar, o que quer que fosse a sua jovem vítima.

-Velho, eu tô ficando sem saco já! Se tu não passar... -

Ouviu-se um som de algo macio sendo atingido. Depois um choro baixo.

-Pára de chorar, viadinho!-

-Bora quebrar ele!-

Darinho saiu de seu esconderijo, convocou a água de novo, dessa vez em várias gotículas e as arremessou ao beco.

O Instituto Vitória Régia:  Dobras e PortaisOnde histórias criam vida. Descubra agora