Homenagem

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O gosto de cigarro ainda lhe enchia a boca quando ele chegou à porta do cemitério.

Desenvolvera o hábito de fumar fazia bem uns cinco anos. Uma das poucas coisas que tornava toda aquela situação suportável. Apesar das críticas de Azura e outros amigos próximos.

Atravessou os portões. O cemitério ficava bastante longe do centro da cidade, mas era melhor assim. Ademais, escolhera vir dois dias depois do velório. Não queria ter que ver ou lidar com ninguém. Quisera vir também naquele horário, pouco antes do sol nascer.

Era um espaço bastante bem cuidado, apesar de alguns trechos de mato crescendo desgovernados, aqui e ali. Estátuas de santos e anjos de asas abertas olhavam em diferentes direções. As esculturas deixavam Damião extremamente desconfortável.

"Qualquer coisa que pode lhe olhar, pode lhe julgar" Era o que ele dizia a Raul, um grande amigo seu.

Damião era um homem alto e robusto, com um rosto quadrado, boca fina e olhos meio caídos, cuja expressão piorava depois das longas noites insones que passara desde...

Conhecera Raul durante uma viagem, a amizade entre ambos surgira quase que imediatamente. Era difícil ver um sem o outro, membros dos grupos frequentados por ambos comentavam isso. Mesmo quando Raul concluíra a faculdade e fora atrás do sonho padrão de ter uma casa, um bom carro e constituir uma família, ainda assim o contato não tinha arrefecido.

Por isso mesmo que era extremamente doloroso a Damião, segurando sua última carta, ficar parado diante da lápide que agora demarcava seu lugar de descanso eterno.

-Você devia ter me esperado, seu grande imbecil- Murmurou ele, sem ocultar a profunda dor em sua voz.

A carta, de papel amarelado, que segurava com força entre os seus dedos, dava noticias de Elisa, filha única de Raul, e requisitava de Damião ajuda e aconselhamento, para um problema, se é que podia ser chamado assim, com o qual apenas ele poderia lidar.

A névoa começava a se diluir, logo o sol nasceria espantando o frio do lugar e demais espíritos errantes que ainda vagassem por ali. Mas Damião permaneceu parado diante do túmulo, nem ele próprio sabia o porquê, só sentia que não queria deixar o amigo ali, deixa-lo para trás...

Foi quando sentiu que alguém o observava.

-Você precisa consertar esse hábito de ficar espionando as pessoas- Disse ele –Sobretudo no que diz respeito a mim-

A mulher, oculta pela sombra de uma velha árvore próxima, saiu de seu esconderijo. Era uma figura mediana, de pele acobreada e fartos cabelos anelados, os quais pareciam estar firmados por uma grande quantidade de laquê. Usava um terninho azul royal e trazia um ramalhete de violetas entre as mãos.

-O que eu posso dizer ?- A voz dela era como veludo, baixa, suave e estranhamente perigosa -... Dentre meus poucos amigos você é o mais interessante

Damião ficou em silencio enquanto a mulher passava por ele e depositava as flores no túmulo.

-Ele adorava flores. Não que faça alguma diferença agora- Comentou.

-Acho que de onde ele está não vai se importar tanto. Aos mortos só cabe a passagem, aos vivos, lembranças e homenagens-.

-Você nunca foi muito próxima dele, Azura-.

-O que não significa que preciso desprezar seu túmulo... - E aqui ela colocou gentilmente a mão sobre o ombro de Damião -... Ou seu luto, aparecendo sem nada-

O homem nada disse.

-Eu vim aqui por que estou preocupada com você meu querido. A perda de um ente tão próximo... -

-Não nos víamos fazia um tempo- Disse Damião, e a tristeza em sua voz era quase tangível.

-As demandas do mundo adulto. Posso imaginar- Disse Azura.

Ficaram em silencio contemplando a lápide. As violetas, realmente, davam um toque especial, mesmo a tão sombria morte.

-Se posso perguntar... Como aconteceu ?- Perguntou ela.

-Um desabamento-

-Causado por forças naturais, eu imagino-.

Damião suspirou.

-É do que estou tentando me convencer-

Um vento frio começou a soprar, ouviram um eco distante que lembrava um choro. Azura se arrepiou.

-Medo de fantasmas ?- Damião não sorria.

-Cemitérios não são lugares com uma energia muito... Agradável- Ela esfregava os próprios braços freneticamente.

-Posso imaginar-

Damião ergueu a mão e a estendeu ao túmulo.

-Luzes bruxuleantes. Abraço do entardecer... - Sussurrou.

Um círculo de pequenos vagalumes, que reluziam como brasas apareceu, circundando a pedra fria numa dança desordenada, mas, nem por isso, privada de certa beleza.

-Para que isso ?- Perguntou Azura.

-Só quero assegurar que ele durma em paz. Que nenhum espirito noturno ou ente mal-intencionado venha perturbar seu corpo-

Azura nada disse, apenas olhava para o sepulcro com uma expressão estranha.

-Vamos ?- Sugeriu ele.

Os dois deram as costas para a lápide (Damião, mais sendo carregado por Azura do que por sua própria vontade) e rumaram aos portões do cemitério.

-Eu preciso perguntar meu amigo. O que pretende fazer agora ?- Os dois estavam parados diante dos feios portões de ferro.

Damião lhe mostrou a carta.

-A filha dele ?-

-Sim- Damião aquiesceu –Uma pena que as coisas tiveram que acontecer dessa forma, que isso... - Ele olhou para dentro -... Tenha precisado acontecer-

-Compreendo-

-Acho que só estou nesse mundo pelo desgosto- Disse Damião.

-Não diga isso- Azura se aproximou dele e tocou seu braço com gentileza –Nada do que aconteceu até hoje foi sua culpa, meu querido. Nada. Você, como muitos que vivem neste plano, só foi vítima das circunstancias, de gente perversa e inescrupulosa-

-Obrigado Azura -

-Não há de que. Estou sempre aqui- E ela sorriu –Para o que precisar-

-Ah...- Fez ela, como se uma súbita lembrança a tivesse acometido. – Elouise quer falar conosco- Ela tirou algo que lembrava uma carta de baralho, preta e luzente, com adornos prateados, do bolso. –Assim que sua fase de luto acabar... Ela pede que vá falar com ela

-Aconteceu algo ?- Perguntou Damião.

-Ainda não... Mas os mais velhos e a Irmandade estão preocupados. Previsões e sonhos estão ocorrendo com certa... frequência. E muitos não são bons-

-Mais coisas com as quais me preocupar. Oh deuses! -

-Tome seu tempo- Azura tocou-lhe a mão –Não é nada que não esteja a nosso alcance resolver, e Elouise, melhor do que ninguém, vai entender sua demora. Bem... Agora preciso ir meu querido- Ela o beijou no rosto e se afastou subindo a rua.

Damião ficou com a incomum carta de baralho na mão. Uma parte sua queria ardentemente saber o que demandava sua presença diante de tão distinta figura que era Elouise, mas por outro lado...

Azura não estava errada. Damião já lidava com coisas demais, mesmo antes da morte de Raul, e aquilo ainda o atormentava, mesmo cinco anos depois...

-A amargura...- Suspirou ele.

Meteu a carta num dos bolsos internos do jaquetão verde-escuro que usava naquela manhã e tomou o caminho oposto ao de Azura. Ainda tinha uma promessa a cumprir com seu amigo. E não faltaria com ela.

Os dois, Azura e Damião seguiam seus rumos, sem olhar para trás, súbito, um vento forte soprou, levantando algumas folhas e pedaços de papel na rua.

Eles desapareceram.  

O Instituto Vitória Régia:  Dobras e PortaisOnde histórias criam vida. Descubra agora