-Tudo o que eu queria - começou Harry - era poder sair de casa. Já faz uma semana que eu não visto outra coisa senão pijamas.
-Hoje à noite aconteceria o baile do Met Gala, se não tivesse sido cancelado por conta do vírus - Disse Sam, introduzindo uma mordida de torrada com geleia na boca.
Tomavam café da manhã tranquilamente enquanto relembravam alguns dos momentos considerados mais icônicos do popular evento de arrecadação de fundos do Museu de Arte Metropolitano de Nova York, desde a imponente cauda amarela de Rihanna até a caricata roupa em forma de lustre de Katy Perry. Assim que finalizaram o café da manhã, Harry propôs uma forma de passar o tempo: criar suas próprias versões de figurinos para o Met Gala.
Foram até o quarto de hóspedes, ainda desarrumado da noite anterior, e Sam começou a tirar suas roupas, com as instruções de Harry, que subiu na cama e pegou o edredom branco, imediatamente depois descendo do móvel e enrolando o longo tecido ao redor de Sam, que tinha ficado apenas em suas roupas de baixo, entregue à brincadeira. Sam ficou segurando o "vestido" enquanto Harry buscava em uma gaveta um cinto de couro preto com uma fivela dourada para arrematar o look.
Ambos começaram a rir, e Harry cruzou o corredor até a sala de estar, eufórico. Sam fechou a porta do quarto e esperou a deixa do namorado para desfilar.
-Senhoras e senhores, com vocês na passarela, Sam Ferguson, ou deveria dizer, Samantha Ferguson? - Harry começou a rir de sua própria voz de locutor.
Sam saiu do quarto incorporando a personagem assignada. Tinha agregado ao visual um óculos escuros, e atuou como se estivesse sendo muito assediado pelos fotógrafos enquanto desfilava até o local onde Harry estava, sentado com as pernas cruzadas no chão aplaudindo e fotografando-o com sua câmera polaroid. Para completar o clima de tapete vermelho, Harry proferiu em alto e bom som:
-Alexa, toque I'm Coming Out, da Diana Ross.
Em dado momento, Harry abandonou a câmera polaroid e pegou seu celular para fotografá-lo, o que não agradou em nada a Sam, que pediu, vigorosamente.
-Para com isso. Eu não quero. - Disse tampando a câmera com as duas mãos.
-Por quê, Sam?
-Porque sim.
Harry sabia bem o porquê. Depois de tudo o que Sam tinha passado no seu processo de aceitação, a rejeição da família tinha lhe provocado sérios traumas emocionais, e pensava que se alguém visse-o daquela forma nas redes sociais as reações seriam como as de sua família. Pode-se dizer que tinha superado grande parte de seu medo da exposição, mas não se sentia preparado para ser visto daquela forma vulnerável devido às cicatrizes deixadas por seus pais em sua história de vida. Notando a forma como Sam tinha ficado inibido, Harry tentou tirá-lo da concha, revelando a pérola que se escondia por baixo de si.
-Sam, você já passou por tanta coisa. Assumir o nosso namoro no meio da rua foi uma atitude tão corajosa, e eu sou grato por termos dado esse passo decisivo juntos até hoje. Se eu postar isso, quem é contra a nossa união vai manter o mesmo posicionamento, mas quem gosta de nós vai nos enxergar como realmente somos. Você estava se divertindo tanto, eu só queria registrar esse momento.
-Eu sei que suas intenções foram boas, Harry.
-Seria uma grande quebra de barreiras. E o vídeo ficou engraçado pra caramba!
Harry sentou-se ao seu lado, revelando o vídeo que tinha gravado. Sam pegou o celular de suas mãos e transcendeu o limite que impunha a si mesmo como forma de autopreservação das pessoas ruins que habitam o mundo, postando o vídeo nas redes sociais de Harry. Uma lágrima escorreu pelo seu rosto, e os olhos de Harry se encheram de orgulho, lacrimejando abundantemente conforme passava a mão direita pela face rosada de Sam, limpando o rastro deixado pelo choro. Só quem já vivenciou uma situação parecida seria capaz de compreender integralmente a importância daquela simples postagem, que poderia parecer ínfima para muitos, mas que tanto representava para ele.
-Sabe como isso poderia ficar mais perfeito? - Complementou Harry - Com uma maquiagem para combinar.
-E onde vamos arrumar maquiagem sem poder sair de casa?
-A Nancy deixou algumas coisas aqui quando veio se arrumar para irmos juntos ao show daquela banda de Green River, qual é o nome mesmo? Ursa Maior? Enfim, eu acho que guardei no gabinete do banheiro, já volto.
Harry saiu e deixou Sam esperando, quando voltou, trazia nos braços uma paleta de sombras coloridas, alguns batons e um iluminador.
-É isso o que temos. - Disse Harry, despejando os materiais no chão.
-E por onde começamos? - Sam parecia confuso.
-Eu não faço a menor ideia.
Começaram a rir simultaneamente. Sam aproximou mais o rosto de Harry que, com os próprios dedos, começou a espalhar uma sombra rosa em seus olhos. Não conseguia conter o riso, e Sam insistiu que queria misturar uma cor verde ao rosa para causar mais impacto, já que era para entrar na brincadeira, que fosse de corpo e alma. Harry espalhou a sombra verde, mesclando-a com a cor que já tinha assentado nos olhos do namorado, criando um efeito surpreendentemente bom, dentro do que as suas habilidades de maquiagem permitiam, começando do rosa nas pálpebras e transicionando para um verde que se estendia até onde a faixa de cabelo começava próximo às orelhas. Para concluir a pintura, passou em seus lábios um batom amarelo da cor de maracujá e iluminou o nariz e a diagonal abaixo dos olhos, como já tinha visto algumas vezes assistindo RuPaul's Drag Race.
Harry cobriu os olhos de Sam para que este não visse o resultado final e conduziu-o até o espelho de corpo inteiro ovalado que tomava lugar em seu quarto, fez uma contagem regressiva e permitiu sua visão. Sam talvez estivesse descobrindo uma de suas paixões naquele momento, pois despertou em si uma vontade imensa de explorar tudo o que aquele mundo de cores tinha a oferecer, tanto que, logo em seguida, virou-se para Harry e disse:
-Agora é sua vez.
Sam correu para a sala e pegou os itens de maquiagem jogados no piso, Harry sentou-se no banco alto da bancada que dividia a sala de estar e a cozinha, e sem que se dessem conta, já era hora do almoço e ainda estavam entretidos com seu tapete vermelho falso. Sam seguiu uma linha mais artística no rosto de Harry, pintando um quadrado azul ao redor de seu olho, tomando desde alguns milímetros abaixo dos cílios inferiores até o topo da sobrancelha, um triângulo vermelho com uma das pontas invadindo o espaço azul, formando uma cor totalmente nova nessa intersecção, e um círculo amarelo acima do quadrado, também se misturando a ele em uma cor verde. Sam estava se divertindo usando o rosto de Harry como tela para expressar sua arte, e este estava igualmente animado, especialmente por ver o namorado desprendido das amarras que o prendiam à questão de gênero, e exprimindo suas verdadeiras emoções. Um muro fora derrubado no íntimo de Sam naquele dia.
Sam pegou um espelho de mão e ofereceu-o para Harry analisar o produto de seu esforço, aquela obra prima inconvencional que tomava forma nas feições do jovem adulto. Harry adorou o resultado, e Sam se empolgou ainda mais:
-Agora você precisa de uma roupa igualmente maravilhosa.
Correu para o quarto, segurando Harry pelo braço, e este despiu-se, aguardando Sam colocar sua criatividade em ação. Sam reproduziu em Harry o vestido de travesseiro que tinha tomado conta das redes sociais durante o período da quarentena, e amarrou-o ao corpo utilizando um cinto marrom com a fivela prateada que encontrou ocasionalmente no armário de Harry.
O desfile repetiu-se, assim como as fotos, todas publicadas sem medo do retorno que teriam das pessoas que os acompanhavam. Dando-se conta de que já tinha passado das duas da tarde, Sam e Harry começaram a procurar em um aplicativo um restaurante com serviço de entregas ativo. Acabaram por pedir comida tailandesa, e Sam desafiou Harry a ir buscar o almoço na portaria sem tirar a maquiagem. Harry aceitou o desafio e assim que o interfone do apartamento tocou, colocou a máscara no rosto, deixando à mostra uma porção da maquiagem que cobria seu olho, e desceu de elevador até o térreo.
Após pagar o que devia ao entregador, Harry olhou para a janela de seu apartamento e viu Sam gravando enquanto ele voltava para o interior, apontando o dedo médio para a câmera. No entanto, antes de voltar ao quarto andar, viu que Sam se afastou da janela e foi até o gramado onde mais cedo o jardineiro regara as plantas, e encontrou a aliança da qual tinha se desfeito na noite passada, escondeu-a no bolso da calça e voltou com a refeição em mãos.
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Inevitável
RomanceQuando tudo parece dar errado, é quando começa a dar certo. Harry e Sam são namorados há algum tempo e, como em qualquer relacionamento, crises vêm e vão, e durante uma dessas crises, quando o que Harry menos quer é olhar nos olhos de Sam, o casal s...