Sobre duas garotas

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Ela sempre usava blusa de manga longa, porque, eu fui descobrir mais tarde, os braços dela viviam cheios de cicatrizes. Olhando agora, eu posso enxergar o quanto fui idiota nos primeiros dias. Acho que cheguei a fazer piada por causa do calor que ela devia passar. Quando lembro disso fico com vontade de socar minha própria cara.

Acontece que ela era duas meninas em uma. Num dia ela parecia a menina mais engraçada e descontrolada do mundo, no outro ela se fechava num iglu de gelo que ninguém penetrava. Foi num desses dias que tentei fazer piada. Minha intenção era só animar um pouco o seu humor. Ledo engano.

Mas essa primeira fase constrangedora passou logo. Eu não sei o que ela viu em mim, mas num certo dia, depois de uma tarde preguiçosa nos gramados da faculdade, ela me deu um beijo. Ela tinha esse jeito de olhar que era intenso e carinhoso ao mesmo tempo, e bastava um vislumbre daquilo pra me enfeitiçar. Até chegar a hora do beijo, a gente passou a tarde conversando sobre as bizarrices que ela gostava. Revolução anarquista. Levante contra a opressão. Niilismo. Depois do beijo ficamos só olhando um para o outro até a noite cair.

Esse era um pouco o jeito dela: num minuto ela começava um discurso grandioso sobre a hiperssexualização da nossa era, no outro ela caía num profundo silêncio que era tão intenso quanto suas ideias. Eu nunca soube direito como lidar com isso. Mas naquele dia do beijo, tudo pareceu se encaixar. E, meu Deus, ela era bonita. Cabelo comprido loiro e ondulado debaixo de um gorro de lã vermelho, uma blusa de moletom azul, calça jeans velha, um par de olhos azuis inteligentes e delicados. Se quisesse, ela me levava para o abismo niilista do Nietsche quando quisesse.

Nos dias seguintes ao beijo eu parecia um cachorrinho implorando discretamente por sua atenção. Mas ela novamente se distanciou. Comecei a pensar que a culpa era minha, que ela tinha se arrependido de ficar comigo, pensei que eu devia engolir meu orgulho e aceitar que ela não gostava de mim. Até que na sexta-feira ela me enviou uma mensagem pedindo pra me encontrar no gramado no fim do dia. Meu coraçãozinho idiota se acendeu de novo.

Enquanto me aproximava do local marcado eu já podia ver sua figura recostada numa árvore. A nossa árvore. Longe de todo mundo, aquele lugar era perfeito pra um casal que queria fugir da realidade. Ela estava com uma expressão pensativa, do tipo que me fazia suar frio tentando saber quem eu encontraria, a menina engraçada e maluca ou a menina gelada e distante. Seu rosto tinha um jeito natural de parecer triste. A boca formava uma linha que algum artista talentoso poderia usar pra ganhar notoriedade no mundo da arte. Você nunca sabia se era um leve sorriso ou um toque de tristeza. Provavelmente os dois.

Quando cheguei e fiquei de frente pra ela, seus olhos me olharam de baixo pra cima daquela maneira que trancava meu cérebro. Não falamos oi nem nada. Não precisava. Depois de uma eternidade olhando um pro outro, ela decidiu falar comigo.

– O que você prefere, duras verdades ou belas mentiras?

Aquilo me atingiu como uma patada. Que diabos ela queria dizer? Fiquei quieto e ela continuou.

– Sei lá, eu to cansada dessa escola, to cansada dessa cidade, to cansada de tudo, sabe? No outro dia eu tava pensando no quanto eu odeio todos os professores desse semestre. Sem exceção. Você reparou que merda foi aquela aula de comunicação social? Aquele idiota falava igual o nariz dele! Eu não quero acabar desse jeito, dando aula num buraco igual a esse, falando com um bando de desocupado igual a nossa turma. Você entende? Eu quero ir embora pra bem longe, encontrar gente que consiga enxergar mais do que um palmo na frente do nariz, quero sentir que eu to fazendo algo de importante. Sei lá... Eu não sei o que eu quero.

Como de costume, eu não disse nada. Pra variar, eu não sabia o que dizer. Só queria que ela soubesse que eu entendia o que ela estava sentindo. Eu conhecia essa sensação de que tudo está fora de lugar e o trem está prestes a descarrilhar. Eu só queria que ela soubesse que eu entendia.

Ali, debaixo da árvore, com a noite caindo, a gente ficou junto pela última vez, em silêncio, como que apenas desfrutando da presença um do outro. Eu não sei se ela chegou a entender que o meu silêncio era um sinal de aceitação, mas acontece que na segunda-feira seguinte ela não apareceu na faculdade, e sem se despedir, ela sumiu no mundo e nunca mais voltou.

Eu não tive outra oportunidade de responder se prefiro duras verdades ou belas mentiras, mas eu queria dizer a ela que não me importo, queria dizer que aceito qualquer uma das opções, aceito qualquer osso que ela queira me jogar, verdades, mentiras, belas ou não, o que for, desde que voltasse a me aceitar dentro daquele iglu de gelo que ela criava pra se proteger, acho eu, de si mesma.

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