O musico do café

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   A sensação da madeira quente encostada no meu rosto foi retornando aos poucos. Cada vez mais alto, eu ouvia um som meio esganiçado, mas ao mesmo tempo harmonioso, que me era bem familiar. Abri os olhos lentamente, ao mesmo tempo em que levantava a cabeça da mesa.
Estava no café. Não lembrava exatamente quando tinha caído no sono, mas deveria ser por culpa do dia exaustivo... e da melodia que era tocada ao fundo. Por algum motivo era relaxante.
Em cima da minha mesa, havia um pedaço de torta de chocolate meio amargo comido pela metade e também uma xícara de chá. Tal já estava frio. Esfreguei os olhos, em seguida olhei para os lados em busca da minha bolsa. Já estava a muito tempo no meu café favorito.
Quando estava prestes a levantar, a música ficou mais alta. Um homem um tanto quanto bonito, de cabelos escuros, que utilizava um ushanka e roupas de frio pesadas, se aproximou enquanto tocava o seu violoncelo. As notas saiam no mesmo ritmo das batidas do meu coração. A última nota foi tocada, e o músico já estava na frente de minha mesa. A música cessou e uma salva de palmas tomou conta do ambiente. O homem se curvou com gratidão, com um sorriso terrivelmente lindo.
Sua voz saiu graciosamente, deixando claro que era um estrangeiro pelo seu sotaque:
-Com licença, poderia me sentar?- ele colocou o instrumento no chão com cuidado.
Eu realmente não sabia o significado disso, mas simplesmente acenei com a cabeça. Ele se sentou. Apoiou a cabeça em suas mãos que estavam sendo sustentadas pelos braços apoiados na mesa, e sorriu provocativo.
-O que achou da minha música? Para ser sincero espero que tenha gostado. Fiz inspirada em você.- acho que fiquei tão surpresa que ficou estampado em meu rosto, tanto que ele deu um leve risinho.- A dama que vem no mesmo horário, e sempre faz o mesmo pedido. Algumas vezes cai no sono enquanto ainda come sua torta de chocolate.- ele apontava pra a torta na mesa.- Uma inspiração e tanto para um artista.
Ah. Agora fazia mais sentido. Senti meu rosto esquentar um pouco por ele ter relatado que eu caia no sono. Não tinha percebido que ele notava.
-Sua música é maravilhosa. Sinto ela encostando no meu coração. Por algum motivo, mesmo ela sendo esganiçada em algumas partes, sinto como se fizesse parte de mim.- dei um leve sorriso. Mas, por outro lado ele não sorria mais. Parecia um pouco ofendido.
-Senhorita, poderia perguntar o seu nome?
-Tsuki.- estendi a minha mão para cumprimentar o músico.
-Fyodor... -ele hesitou um pouco.- Me perdoe se soar rude, mas eu prefiro não apertar a sua mão.
Realmente havia me sentido um pouco ofendida, mas ele deveria ter seus próprios motivos. O clima estava um pouco estranho. Então olhei para a minha torta pela metade. Senti os olhos dele acompanhado os meus. Encarei o doce por alguns segundos esperando que Fyodor fosse embora. Mas, o que aconteceu foi bem diferente.
-Não vai terminar de comer a sua torta? Você pede ela todas as vezes que vem aqui. Presumo que goste bastante dela.- o encarei com um sorriso bobo sem saber o que responder. Então ele tomou uma iniciativa. O músico pegou o garfo que eu usava antes e apanhou um pedaço da sobremesa. Ele se inclinou sobre a mesa para cobrir um pouco do espaço entre nós. Fyodor levou o garfo em direção a minha boca:
-Diga ahh!- ele sorria levemente, mas seus olhos eram provocativos. Minhas bochechas coraram, estava morrendo de vergonha.- Não precisa ser tímida.
Minha boca pareceu se mover sozinha e se entreabriu. O sorriso leve dele passou a ter a mesma frequência dos olhos. A torta tinha um sabor incrível como sempre. Daquela distância eu podia observar muito bem a cor dos olhos que me encaravam. Eles tinham uma cor inusitada. Eram roxos. Eram profundos e misteriosos. Aqueles olhos guardavam muitos segredos. Meu coração acelerou por um segundo quando ele retirou o garfo da minha boca.
Um pouco das migalhas ficaram no canto da minha boca. Fui passar a mão para tirar, mas ele foi mais rápido e passou um guardanapo. Tomando extremo cuidado para sua pele não encostar em mim.
-Uhm... Fyodor? Por que você não quer encostar em mim?- ele ficou um pouco surpreso com a pergunta. Mas, pareceu feliz por eu ter notado tão rápido.
-Veja bem. Como você sabe, a maioria das pessoas tem uma habilidade aqui. A minha se chama crime e punição.- ele pareceu pensativo.- O que eu posso te falar por enquanto, é que eu não posso encostar em você.
Fiquei meio confusa mas compreendi.
Nossa conversa durou algumas horas. Fiquei incrivelmente feliz por ter feito um amigo. No final, eu não fui embora e esperei até o café fechar para ir com o músico.
Nem eu nem ele tínhamos um carro. Então decidimos voltar a pé. O café era longe da minha casa, então resolvemos ir por um caminho que passasse pela casa dele.
No meio do caminho começou a chover. Por sorte, eu tinha um guarda chuva na minha bolsa. Quando olhei pra Fyodor, vi que não tinha nenhum e ofereci o meu.
-Tsuki. Estamos na frente do meu prédio.- Ah. Eu não sabia qual era o prédio dele, então essa situação era bem natural.
-Bem, então eu vou indo Fyodor. Boa noite.- depois me virei para seguir caminho. Até minha casa demoraria um pouco.
-Espere. Por que você não entra? Está bem tarde. Além de estar chovendo. Andar por aí sozinha é bem perigoso.- ouvi os passos dele se aproximando de mim. Virei de volta para ele. Assim podendo ver seus lábios se curvando em um sorriso que já conhecia bem.
-Não precisa se preocupar Fyodor.- dei uma risadinha de leve.- Não é tão perigoso assim.
Ele pareceu decepcionado com a minha resposta. Seu rosto estava muito perto. O músico aproximou seus lábios da minha orelha, se curvando e tomando cuidado para não bater a cabeça no guarda chuva. Ele sussurrou:
-Você tem certeza do que é perigoso? Dizer não para mim... não gostaria de reconsiderar o meu pedido?- meu rosto se esquentou. Nem parecia que era uma noite fria.- Ótimo. Vamos entrar.
O prédio onde Fyodor morava era bem diferente do meu. Ele era bem maior, e parecia ser bem caro. Entramos no elevador. Me posicionei na parede oposta da que Fyodor estava. Nesse horário não tinha quase ninguém na portaria, muito menos no elevador. O espaço era bem grande, mas por algum motivo parecia bem pequeno. O músico apertou o botão do andar 22. Com certeza o prédio era enorme.
Estava bem desconfortável nessa situação. Suas palavras anteriores ressoavam em minha cabeça. Por isso fiquei encarando os sapatos dele. Eram únicos. Fyodor utilizava botas marrons que iam até o joelho. Elas destacavam a calça branca. Os pés dele começaram a se mexer em minha direção. Os passos eram bem altos, já que estava um silêncio insuportável. Levantei o olhar quando Fyodor estava bem em minha frente. Dessa distância, eu notei o quão mais alto ele era. Os cabelos pingando por causa da chuva, seu chapéu encharcado, e sua capa preta parecia mais pesada que antes. Meu coração disparou. Ele colocou a mão ao lado da minha cabeça.
-Por que está tão desconfortável comigo?- Fyodor estava me provocando.
-Ahn... eu não estou desconfortável. Você só está... muito perto.- ele sorriu.
-Mentirosa.
Ele aproximou mais seu rosto chegando bem perto do meu. O meu rosto queimava. Porque ele estava me provocando? Era para eu provocar ele de volta?
Passei meus braços envolta do pescoço dele.
-Fyodor.- ele pareceu surpreso. Seus lábios quase encostando nos meus. Me perguntava se ele poderia escutar o meu coração batendo de tão perto que ele estava.
-Tsuki...- o músico foi interrompido pela porta do elevador que se abriu. Fyodor abaixou a sua mão para me deixar sair do elevador.
O apartamento dele era muito bonito. Decorado com cores mais escuras. Tinha uma varanda, e um pequeno corredor que supondo levava para a cozinha e o quarto dele. Fyodor fechou a porta e foi em direção ao corredor. Ele se virou para mim e disse:
-Sinto muito, mas não tenho roupas femininas aqui. Estaria tudo bem utilizar um dos meus pijamas?
-Não tem nenhum problema. Ficaria muito grata.- me sentei no sofá deixando a minha bolsa de lado.
-Ótimo. Você deveria tomar um banho. O banheiro fica dentro do meu quarto. Venha comigo.- mal tinha acabado de sentar e já tinha levantado. Segui Fyodor que me guiou até o seu quarto. Era um quarto muito bonito, no mesmo esquema do restante da casa. Ele tinha uma cama com lençóis pretos. Parecia incrivelmente macia, mas eu não testaria ela. Obviamente eu ficaria no sofá da sala, afinal, eu estava na casa dele.
Depois do banho, vesti as roupas que ele me deu. Uma blusa de pijama branca, que ficou enorme em mim. O que já era esperado pela diferença de altura. E uma calça no mesmo esquema. Para eu não ficar tropeçando na calça, tive que dobrar ela algumas vezes. Segui de volta o mesmo caminho que Fyodor tinha me mostrado. Ele estava na varanda. Eu deslizei a porta de correr com cuidado. O ar da noite estava frio. A vista era muito bonita. Assim que me notou Fyodor virou-se para mim e me observou de cima para baixo. E depois riu porque as roupas estavam muito grandes. O ushanka não estava em sua cabeça, mas sim em sua mão. Ele estava sem a capa que provavelmente estaria ncharcada por causa da chuva. Me aproximei dele. Fyodor ficava muito bonito rindo. Meio que sem perceber, levei a minha mão até o cabelo dele e o acariciei. O músico parou de rir e me olhou.
-Ah! Desculpe.- falei enquanto tirava a minha mão. Ele segurou a minha mão em sua cabeça utilizando o ushanka, já que não podia encostar em mim.
-Não pare. Eu gosto disso.- ele soltou a minha mão e fiquei sem reação.- Temos que terminar o que começamos, não?
Eu demorei um tempo para entender o que ele quis dizer. Então o elevador veio a minha mente. Eu corei imediatamente por ter sido atirada nele. Mesmo ele tendo pedido para não o fazer, eu tirei a minha mão e me afastei.
-Eu... eu... tenho que ir no banheiro.- foi a única desculpa que veio em minha mente. Me virei e tentei sair o mais rápido possível da varanda, mas ele foi mais rápido que eu. Ainda usando o seu chapéu segurou o meu braço e me fez virar para si. Dessa vez ele estava irritado por ter sido rejeitado.
-Não minta para mim..! Não gosto quando as pessoas são desobedientes.- ele foi agressivo e me puxou para perto. Ele cobriu o espaço entre nós com um beijo. Seus lábios eram quentes. Fyodor colocou a minha mão na nuca dele. Seus olhos eram vibrantes. O roxo estava mais vivo do que antes. A sua franja fazia cócegas em alguns pontos do meu rosto.
-Fyodor...- eu tentei chamar por ele, mas o som ficou abafado. Quase inaudível.
-Shhh.- ele pressionou mais os seus lábios contra os meus. Meu coração disparou. Achei que ele ia explodir. Segurei com um pouco de força o cabelo de Fyodor e coloquei a outra mão em seu peito. Tentei afastá-lo. Ele parecia um pouco fora de si. Depois de um tempo ele pareceu notar que o que estava fazendo não era tão certo assim.
-Perdoe me. Eu sou um pouco impaciente com as pessoas que recusam as minhas ordens. É um instinto natural como líder.- Fyodor, depois de dizer isso, me largou sozinha na varanda. As estrelas brilhavam forte essa noite.

Alguns meses depois.
Eu acariciava o cabelo de Fyodor enquanto ele tocava seu Violoncelo para mim. Aquela era a melodia mais perfeita que eu poderia escutar. O ushanka dele era incrivelmente quente e macio. De vez em quando ele deixava eu usar ele. Como era o caso agora. Nesses últimos meses aprendi muito sobre ele. Principalmente que ele era bem possessivo. Além de mim, ele não deixava ninguém utilizar seu ushanka. Fyodor também adora me provocar. Esse é um dos toques especiais dele. Eu acordei dos meus pensamentos quando o músico parou de tocar.
-Tsuki~ você está viajando muito. No que poderia estar pensando? Eu estou bem aqui!- Fyodor segurou o meu rosto e me conduziu para vários beijos seguidos. Alguns na bochecha, outros na boca. Essa era outra característica dele: ataques de beijo. Agora ele podia me tocar contanto que usasse um par de luvas desenvolvidas por um laboratório ante-habilidades. Fyodor começou a intensificar o beijo, e eu o afastei chegando mais para o lado no sofá.
-Fyodor, você não estava me ensinando a tocar violoncelo?- no final deu um risinho. Ele era muito fofo. Fyodor deitou a cabeça no meu colo virado para cima.
-Sim... mas, nós temos direito a uma pausa, não acha? Qual o problema de querer beijar a minha própria namorada?- voltei a acariciar o cabelo dele e sorri.
-Nenhum. Mas, quero aprender a tocar pelo menos uma nota! Eu sou muito ruim nisso!- ele riu.
-Okay, okay. Eu volto a te ensinar pelo preço de um beijo.- aquele olhar provocativo que eu amava tanto.
-Uhmm. Você me ensina primeiro. Depois te dou um beijo.- ele me lançou um olhar de derreter até a alma.
-Entendo o que você quer... Okay vou te ensinar.- ele se levantou, pegou seu violoncelo e começou a me explicar algumas coisas.- Vou te fazer uma demonstração.
Fyodor começou a tocar. Era simplesmente magnífico. A melodia que seguia as batidas do meu coração. O músico do meu café favorito, o meu namorado, era quem conduzia meu coração naquela melodia.

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