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Continuando a regressão no tempo, antes de ter me aventurado no ramo de distribuição de livros e revistas, navegava pela engenharia civil, um campo amplo, mergulhando onde devia e podia.

Trabalhava tipo "free lancer", o que permitia  flexibilidade e condições plenas para atender a demanda. Isso por bom tempo gerou segurança financeira, sempre surgia serviços aqui e acolá.

A atividade era prazerosa pela liberdade de ir e vir e atendendo a uma necessidade pessoal que era a fuga de rotinas, preso em escritórios. Eram serviços que me levaram a conhecer rincões longínquos desse país que de outra forma teria sido difícil praticamente impossível.

Contudo, o mercado oscila, e o que era bom deixou de ser. As vantagens vieram a perder o atrativo, levando-me a procurar um porto mais seguro fora da engenharia. Foi como deixar o burro tomar conta da carroça, mas bateu um desespero e nessas horas bate a insegurança e a bússola perdeu o norte.

Precedera essa etapa, supervisão de reformas escolares. Viajava pelas cidades do interior, coordenando serviços a serem realizados. O salário razoável, mas as diárias me levavam a pensar em dormir dentro do carro e só comer pipoca. Três anos assim.

Ao entrar no primeiro hotel, desculpem, pensão, mas     diante da porta alta, antiga, pintada na cor verde musgo, com fechadura e chave que, quando dos tempos de molecagem, constituíam o "famoso buraco da fechadura", veio-me a recordação de um passado generoso, fazendo com que a realidade me esbofeteasse o rosto a cada entrada num quarto decrépito e mal mobiliado.

Acordava com estrados das camas marcados nas costas, banheiros nojentos com cubas escurecidas, só para citar algumas desventuras. Considerando que em algumas cidades o banheiro era externo, de uso coletivo.

Tudo era triste, degradante , precário e atormentava, pois espelhava um declínio grotesco que me esfolava: a dor de uma decadência.

Como só tinha isso em mãos, na luta pela sobrevivência, respirava fundo e aguentava, tendo fixado no quebra sol do meu carro uma oração:

"Concedei-me Senhor
Serenidade necessária para aceitar as coisa que não posso modificar;
Coragem para modificar as que eu posso; Sabedoria para poder distinguir uma das outras, vivendo um dia de cada vez."

Foram três longos anos que pareceram uma década. Mas chegou ao fim. Com a mudança de governo, um programa primoroso foi encerrado.
Quanto a mim, já estava em busca de novos horizontes.

No meu voo retrógrado e, antes de uma apunhalada fatal, passei bom tempo me dedicando à engenharia civil e de segurança, cercado por jardins de Burle Max e prédios modulados rodeados por aquele verde maravilhoso.

Além de contatos com pessoas das mais diferentes áreas, aquele local era rico na convergência de artistas, teatrólogos, cinegrafistas, cenógrafos que formavam um mundo mágico.

Além dos funcionários fixos, a presença constante de pessoas de excelência nas atividades que exerciam e que participavam como convidados de uma rica programação de entrevistas, debates, programas infantis e jornalísticos, como Altas Horas, Castelo Ra-tim-bum, Roda Viva, No Mundo da Lua, Metrópolis, entre outros de qualidade indiscutível.

Ah! Época feliz! Confesso que era mais apaixonado por essa aura de criatividade e genialidade, do que propriamente por meus afazeres de engenheiro.

Ocorriam contatos com essas pessoas e até bate-papos informais. O restaurante da Fundação Padre Anchieta funcionava no sistema de bandejão. Isso facilitava as condições para uma interação salutar.

Certo dia sentado sozinho e sobrando três lugares na mesa que ocupava, chegaram três jovens barbudos, com tatuagens, piercings, vestidos a caráter do rock pesado e carregados de pulseiras.

Com muita educação, perguntaram-me se podiam completar a mesa. Meio sem graça, pois minha roupa não obedecia aos requisitos impostos por eles e também sabendo que se tratava do conjunto Sepultura, fiz sinal para que ficassem à vontade.

No íntimo, fiquei agradecido e aguardando a possibilidade de um papo porreta e talvez incompreensível para alguém "normal" como eu.

Enfim foi uma surpresa inesperada e gratificante. Foram  gentis, participativos na conversa e todos ao redor me olhavam com uma inveja grotesca... rsrs.

Na lanchonete, também ocorriam esses encontros fortuitos, permitindo excelente interação com artistas, pessoas a serem entrevistadas, comediantes, repórteres, escritores, apresentadores, etc. Como os horários eram muito flexíveis, devido à programação, esse fato oferecia a oportunidade de um enriquecimento cultural a todos que ali se encontrassem.

Destaca-se que esse não seria o mundo normal de um engenheiro civil, mas como a maior parte da verba destinada a Fundação atendia prioritariamente à programação, o setor de engenharia civil só era atendido no caso de reformas, modernizações e adaptações, posto que toda a infraestrutura já existia.

No meu mundo real das obras e reformas, incumbiram-me de levar a cabo a execução de uma nova sala do conselho e presidência da instituição, que fora prevista e aprovada no ano anterior.
O prazo determinado pelo cronograma de execução era exíguo apesar de ter sido aprovado com um ano de antecedência.

Liberaram os serviços em cima da hora, e em momento inadequado, foi quando ocorreu um infortúnio...parece que a vida sempre os colocou diante de mim, talvez uma prova que gerou séria consequência.

Aconteceu que, chegando à obra, bem no seu início, encontrei todos os funcionários sentados e parados. Segundo o mestre de obras, nosso superior havia ordenado para que se evitasse barulho e levantamento de pó, para não atrapalhar uma reunião da presidência com conselheiros, que ocorria na Instituição naquele momento.

Entretanto, ciente da urgência da retirada de uma simples porta metálica e corrediça, que impossibilitava o desenvolvimento de outros trabalhos, e considerando também que o serviço jamais geraria ruídos e levantamento de pó a níveis de que poderiam comprometer qualquer reunião, assumi a responsabilidade junto ao mestre de obras.

Ele, meio que vendido, mandou ver e, em dez minutos, a porta já não atravancava todos os demais trabalhos como também não gerou uma única reclamação.

Naquele instante, com a porta já retirada, chegou o chefe e vendo o que viu, demonstrou em seu rosto um ar de "incompetência", apesar de não sê-lo, afirmo eu.

Perguntou:

-Como vocês fizeram isso?

Diante dele e de todos os outros, assumi a responsabilidade. Surgiu um mal estar, pois, na tourada, a peãozada torcia pelo touro. Mas a vingança não tardou a chegar...

Tendo ele uma amante, que trabalhava junto da secretaria do diretor, e que por sua vez era sua amante, fato do conhecimento de todos na Fundação, tudo rolou contra mim e veio um bilhete azul, logo após a entrega da reforma dentro do prazo. Essa minha falta de juízo...

Para ser contratado pela Fundação, passei por todas fases estipulada pelo setor de admissão. Pedi as contas de uma construtora que, na época, ocupava a nonagésima posição no ranking mundial. Muitos podem pensar que cometi uma tremenda besteira, entretanto financeiramente não justificava. Fiz o certo, não me restaram dúvidas.

MORRI AOS 54 ANOSOnde histórias criam vida. Descubra agora