Artur tinha 8 anos quando seu pai foi embora. Todas as noites ele começava o mesmo ritual voltado para o céu, contando as estrelas e tentando descobrir perto de qual delas ele estaria. É que o pai do Artur era astronauta, sabe, e naquela idade, ele ainda não sabia que as estrelas estavam muito mais longe que seu pai poderia estar. Mas crianças não pensam logicamente, não era difícil de acreditar que seu pai estaria rodopiando em volta das estrelas e luas, vendo a Terra de longe e imaginando o que Artur tinha comido no café da manhã.
Ele achava esquisito como sua mãe nunca se interessava pelo céu da mesma maneira que ele. Ela nunca falava muito do seu pai, na verdade, desconversava quando ele perguntava se ela sentia saudades. Ele queria sempre perguntar mais coisas a mãe, se ela sabia pra onde ele tinha ido. Quando ele ia voltar. Com o passar do tempo, as fotos do seu pai foram sendo tiradas das paredes, incluindo aquela bem bonita em que ele posava com toda a equipe, todos os astronautas em um foguete cheio de botões. Ele foi percebendo que as fotos magoavam a sua mãe e não questionou quando elas começaram a desaparecer.
Mas ele as guardou. Todas moravam embaixo da sua cama, numa caixa com um foguete pousando na lua desenhado na tampa. As fotos do seu pai, cartas de quando ele estava na estação espacial, os CDs favoritos que ele deixou pra trás. Tudo estava lá, um grande arquivo das memórias que ele tinha que manter.
Já fazia mais de cinco anos quando ele recebeu mais uma carta. Sua mãe não quis saber o que dizia e foi cuidar das plantas, seu código implícito pra poder ir chorar sem mostrar o rosto todo vermelho e o nariz fungando esquisito. Artur não sabia porque ela estava chorando, mas pensou que talvez ela já soubesse o que tinha naquela carta, que ele seria o último a saber (às vezes os pais fazem isso com os filhos, né?).
A carta veio digitada e ele sentiu saudades da caligrafia do seu pai. Ela começava muito bonita, dizendo sentir falta de brincar no quintal e imaginando que ele deveria estar diferente agora, mais moço. Perguntava se ele gostava de alguma menininha na escola e se continuava cuidando da sua mãe, porque era importante que ela tivesse muito carinho e ajuda sempre. Sentado na sua cama lendo, ele chorou e entendeu, antes que seu pai dissesse na carta, porque sua mãe chorava. Ele não ia voltar.
"Eu espero que tudo por aí esteja bem e que vocês estejam bem sem mim. Não pense que não sinto saudades, tá bom? Sempre sinto e me lembro de vocês em quase tudo que eu faço. Mas algo aconteceu aqui e eu não sei quando vou poder voltar pra casa, não sei se consigo voltar.". É difícil ler essas coisas por carta, porque você não consegue responder a pessoa. Não consegue interromper o que ela está falando, dizer que está magoando e contestar as suas escolhas. Não tem com quem gritar, pra quem espernear e não tem nem como fazer uma chantagem emocional pra pessoa mudar de opinião. Como a pessoa vai saber que está errada?
Seu pai tinha voado um dia pra fora da nave, um astronauta flutuando no vácuo do espaço, preso por uma corda que nem um bebê quando nasce. Ele só queria voar um pouco pra fora, queria conhecer o espaço além da janela. Mas o astronauta curioso tropeçou no nada e esbarrou numa órbita nova. Uma órbita magnética de onde ele não conseguiu sair. Lá tinha uma planeta.
A moça planeta em quem ele tropeçou era toda colorida e com uma órbita bem fácil de puxar astronautas sozinhos. Ele parou um pouco por lá, andou pela terra cor de rosa e viu as plantas que tinha. Viu a água verde claro e flores laranjas. Viu passarinhos que ele nunca tinha visto no nosso planeta, viu tanta coisa que perdeu a conta. Ele andou por toda a superfície da moça planeta e perguntava de tudo pra ela. E ela respondia e ensinava os caminhos do seu lugar. Mas ele sentia a solidão na voz dela. Planetas não têm muita companhia, no máximo algumas luas ou astronautas perdidos, talvez um cometa que cai sem ser convidado. Ela não tinha crateras, não tinha luas e nunca tinha visto um astronauta.
"Ela me perguntou de onde eu vim, porque nem sabia que existiam outros lugares, você acredita, Artur? Eu contei tudo a ela, de você e da sua mãe, do nosso quintal grande e das nossas brincadeiras. Contei que aí o céu é azul e a terra é verde. Contei que você é o menino mais esperto que já conheci e mostrei fotos suas. Queria poder te mostrar fotos daqui também, você ia gostar. Quem sabe um dia você não vem me visitar?".
O pai de Artur explicou que aquela carta era digitada porque ele tinha ditado, falado ela todinha no microfone, que um amigo dele tinha enviado da nave. Era importante que fizesse isso antes de cortar a corda. Ele decidiu ficar por lá, com a moça planeta. Ele dizia na carta que talvez um dia visite, porque talvez os amigos astronautas dele desçam lá pra visitar e então ele talvez possa pegar uma carona de volta. Mas eram muitos talvezes. Às vezes dói mais ler um talvez do que um nunca mais.
Ele cortou a corda. É difícil de acreditar, né? Artur também não acreditou que ele tinha ficado por lá. Ele conseguia entender que terra cor de rosa e água verde devem ser coisas fantásticas, que encantam o homem. E que conhecer uma moça planeta deve ser coisa de outro mundo. Mas ele cortou a corda, de vez. E resolveu ficar por lá. E a água azul que tinha por aqui? E aquela lama marrom que fica no quintal depois que chove? E as coisas que só existiam na Terra?
Depois de ler a carta, ele guardou na caixa de foguete e olhou para as fotos que tinha guardado, para a equipe do seu pai toda sorrindo. Eram muitas pessoas, alguns homens e algumas mulheres. O amigo que digitou a carta devia estar lá no meio. Seu pai sorria no meio deles, entre um moço loiro e uma moça de óculos de armação rosa. Pela primeira vez desde que ele se foi, Artur sentiu raiva e não quis que ele voltasse.
Ele guardou a caixa de volta embaixo da cama e saiu pro quintal. O sol estava alto e sua mãe estava lá, cuidando das plantas. Ela já não chorava e sorriu pra ele, sabendo que agora ele sabia. Cumplicidade silenciosa, sabe? Ele se sentou do seu lado e começou a mexer naquela terra marrom, tirando as ervas daninhas verde escuro que despontavam em meio ao manjericão.
— Você tá bem?
— A gente pode descer pro rio essa semana?
— Pode, filho. Alguma razão especial?
— Quero nadar. Na água azul, sabe?
Ela sorriu e disse que sabia, sim. E que eles iam descer pra nadar na água azul e ela ia fazer bolo de chocolate no final da tarde. Ele continuou mexendo na terra com ela aquele dia todinho. De noite, quando a lua subiu alto e ele viu as estrelas brilharem, ficou se perguntando se algum pontinho daqueles seria a moça planeta e se seu pai talvez estivesse olhando pro céu pensando na Terra.
Talvez ele estivesse muito entretido conversando com a moça planeta e descobrindo cavernas e colinas nos lugares que ele ainda não tinha ido. Talvez ele estivesse fazendo um churrasco e talvez, com muita sorte, ele estivesse também olhando pro céu. Pensando na Terra, pensando no Artur.
Ele fechou os olhos e foi pegando no sono bem devagar. Imagens coloridas, rios muito longos e um céu sem lua nenhuma começaram a aparecer. Devagarzinho, um cordão de astronauta flutuando, cortado, apareceu navegando pelo céu. Às vezes a gente consegue fazer viagens interplanetárias só sonhando. É que gente nunca está de verdade apenas num único lugar.
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Astronauta perdido
Fantasy"Seu pai sorria no meio deles, entre um moço loiro e uma moça de óculos de armação rosa. Pela primeira vez desde que ele se foi, Artur sentiu raiva e não quis que ele voltasse."