Era uma noite chuvosa. As gotas surravam incessantemente o teto e a lateral da velha casa, impulsionado pelo forte vento que assobiava nas arvores.
O velho acordou assustado com um barulho no piso inferior. "De certo são aqueles ratos novamente", pensou. Ha meses ele lutava contra aquela praga que havia infestado sua casa, mas os ratos eram rápidos e astutos, seu velho corpo não conseguia acompanha-los.
Tirou seus grossos e sujos lençóis de cima de si, revelando seu pijama amarelado e puído. Sentou-se e suspirou. Por um momento, o ar faltou em seus pulmões, desesperado tentou levantar, mas o chão logo veio ao seu encontro. O baque da queda, liberou a espessa camada de poeira no ar, enchendo sua boca e nariz, o que o fez tossir desesperadamente, a ponto de sair de sua boca uma mistura de saliva, catarro e sangue. Até que os espasmos cessaram. O velho continuou deitado ali, imóvel, por mais de dez minutos. Respirando audivelmente e com o sangue escorrendo do canto de sua boca.
Ainda deitado, ouviu se estomago se queixar da fome, e lembrou-se de sua ultima refeição: um quebradiço pedaço de bolo seco que comera na tarde anterior. Decidiu então descer e procurar algo para comer. Levantou a muito custo, apoiando-se na cama e no criado-mudo e atravessou o escuro quarto em direção a porta.
Ao finalmente chegar à saída do quarto, cambaleou, mas conseguiu se segurar na maçaneta. Enquanto se levantava, sentiu uma pontada em sua lombar, uma dor que quase o levou novamente ao chão. Apoiou as costas com a mão e se aprumou lentamente. A dor aumentando a cada movimento. Tateou uma pequena mesa ao seu lado, a procura de vela e fósforos; enfim os achou. Acendeu a vela, pois seus dedos nodosos na maçaneta enferrujada e saiu.
O corredor era longo e estreito; iluminado apenas, além da vela, pelos repentinos lampejos, que precediam os rugidos estrondosos do céu, que faziam as tábuas da casa vibrarem. O velho andou pesadamente, ignorando todos os quadros, emoldurados em prata e carvalho, agora com um aspecto decrépito. Parou apenas diante de um espelho, grande e empoeirado. Ainda se podia notar o brilho dos finos fios de ouro que adornavam os vãos na moldura de cobre, onde podia ver sua figura distorcida pela camada de pó.
Passou os dedos longos e magros na superfície do espelho, retirando a sujeira e revelando seu rosto cumprido e enrugado, a que ele olhou com desprezo. Entre seus cansados olhos, um nariz grande e curvado para baixo. Sua boca, quase não estava visível, devido aos anos sem fazer a barba.
Terminou de recordar o passado diante do espelho e seguiu caminho pela escada. Cada passo produzia um rangido longo e fantasmagórico, quase um lamento. Ao fim da escada, o hall. Um espaço enorme, repleto de mobília coberta por lençóis que, a vista do velho, pareciam vultos brancos flutuando pela casa. Tornou a ouvir outros barulhos, dessa vez mais altos, produzidos pela queda de um objeto grande. Grande de mais para um rato.
Se apressou em chegar a cozinha. Entrou em uma porta e passou pela sala de jantar, onde havia uma longa mesa. Caído encima dela, um grande lustre feito de pequenas pérolas de cristal polido, agora tomado por teias de aranha. Parou diante da porta que levava para a cozinha, o medo agora o chegava a mente ao imaginar quem ou o que lhe esperava atrás da porta. Tentou olhar pela fechadura, mas os detritos não o deixaram ver através do buraco. Não havia outra saída, não havia a que recorrer, tinha que entrar lá. Reuniu toda a coragem que pode e entrou subitamente pela porta.
Olhou a cozinha, estudando-a. Viu panelas e tábuas de corte no chão, logo e a frente, a pequena porta da despensa aberta “Seja quem for, deve estar ali” pensou. Caminhou lentamente em direção á porta, a fim de não fazer barulho. Passando pelo balcão, pegou uma pesada frigideira, a única arma ao seu alcance.
Chegou ao pé da porta semiaberta e, num impulso, empurrou a porta com força, pronto para acabar com a raça de qualquer um que estivesse dentro daquele cubículo. Mas não tinha nada. Olhou desconfiado para as prateleiras, com receios do que elas pudessem estar escondendo, mas logo percebeu que não tinha ninguém ali. Já conformado com a possibilidade de ser apenas um rato, ou qualquer animal que o valha, abaixou a frigideira.
No mesmo instante, sentiu algo a sua nuca, algo fino e frio, que lhe causou um arrepio já conhecido. A lâmina lhe causava uma agonia a muito esquecida, apenas a mera lembrança o fazia sentir nojo de si mesmo, mas não era o momento para lembrar daquilo.
– Quieto – Ouviu a voz atrás dele dizendo. A voz era áspera e fria, sem emoção.
– Tudo bem, pode levar o que quiser – disse soltando a frigideira.
– Não quero nada de você, apenas de quem fui contratado. Não é certo roubar.
– Contratado... – sua voz estava trêmula – Diz... contratado para me matar?.
– Sua morte dependerá de você. – Pegou as mãos do velho com violência, as amarrou com uma corda fina e resistente e o Jogou em uma cadeira.
Ainda confuso e com dores, levantou a cabeça. O invasor vestia um manto negro com um capuz, que impedia de ver qualquer parte identificável de seu corpo. O vulto negro pegou uma cadeira, colocou na frente do velho e sentou-se, encarando-o através das sombras do capuz.
–Conte-me sua história.