Conforme caminhava pelas ruas, com a brisa fria da atmosfera gélida do inverno em São Paulo fazendo minha espinha tremer à cada passo dado, me estorvava o fato de sentir que havia visto aquela figura em meu encalço alguns quarteirões atrás. Para falar a verdade, em meu inconsciente, eu acreditava que a havia visto já quando eu acabara de sair de minha casa. Sim, não me falha a memória. Me lembro bem de vê-la de costas em um dos becos em frente aonde moro. Logo quando fechei a porta de meus aposentos, e me virei para seguir aos meus compromissos, me recordo da vista efêmera que tive daquela pessoa, num simples relance de meu olhar.
Não tenho dúvidas. As mesmas vestimentas. O terno cor de âmbar, que irradiava um sentimento avarento em uma tonalidade perceptivelmente obscura e melancólica. Talvez pela cor do terno transmitir uma sensação mista e contrastante entre o brilho áureo e a decadência ferruginosa. Aquele tom âmbar, tentando sobressair-se perante o encardido, parecia como a luz imortal do sucesso, em uma luta interminável com a podridão do perecível. Eu não fazia ideia de como havia reparado nas roupas do cavalheiro, de maneira que me despertassem esse sentimento deveras curioso.
Mas de uma coisa eu tinha certeza: depois de ver o homem próximo à minha habitação, voltei a vê-lo novamente, alguns quarteirões depois, e novamente, mais alguns quarteirões adiante. Fazem mais ou menos dez minutos desde a última vez que acredito tê-lo visto. Estava, dessa vez, exibindo o lado frontal de seu terno, cuja cor já comentada, era conspícua mesmo em meio à neblina densa daquele dia. Agora era nítido que estava a me seguir. Já não podia suportar a tensão de saber que havia alguém atrás de mim, aparentando estar sempre um passo à frente, pela maneira na qual surgia nas esquinas.
Devo admitir, todavia, que não sou uma pessoa de psique muito tranquila. Em vários momentos de minha vida, que havia sido afundada no álcool e, sem qualquer orgulho em dizer isto, também nas ervas da serenidade, tive a sensação de estar sendo perseguido. Talvez por ter embarcado muito cedo neste mundo indecente, meu medo de ser pego enquanto me deleitava nos sonhos artificiais e na bebida me fizera desenvolver este tormento mental que me impede de acreditar que não haja ninguém a observar meus passos, ao longe.
Entretanto, vale ressaltar, para que não pensem que sou um louco, que este tipo de vestimenta, como descrevi, era algo muito raro de ser encontrado sendo usado por alguém nessas redondezas ou, acredito eu, em qualquer lugar do mundo. Não é todo dia que vemos alguém usando vestimentas tão formais com esta coloração específica. Na verdade, a última pessoa que me lembro de ter visto usando algo parecido foi um senhor no ônibus em que entrei há, talvez, quatro meses, quando estava indo ao trabalho. Mas não posso acreditar que aquele homem, de idade tão avançada, estivesse me seguindo desde então. Seria irracional pensar que estivera quatro meses esperando para finalmente dar as caras. Mas eu de qualquer jeito não haveria de descartar a possibilidade de ser aquele senhor. Sim, mesmo que não houvesse sentido lógico, era o que minha mente faria. A mente de um adulto com sua alegria banhada nas mais profundas águas do poço de medo que mergulhamos quando passamos a viver uma vida como a minha. Essa é a mente, distorcida por substâncias depreciativas, de um fruto da discórdia, parido na mágoa e largado para que pudesse sentir apenas a ansiedade do temor e, como constatei antes, o frio. O frio do inverno em São Paulo.
Ao contrário do que eu acreditava, o homem no terno cor de âmbar não voltou a aparecer depois que andei alguns quarteirões e, quanto mais passos eu dava e não voltava a rever a figura, mais acreditava que poderia ter sido realmente fruto de meu psicológico abalado.
“Talvez uma coincidência”, pensei. Sim, era muito inviável acreditar que em um mesmo dia pude ver três pessoas diferentes aderidas todas à mesma modalidade peculiar de se vestir. Mas não seria inviável também acreditar que estava sendo perseguido pelo mesmo homem que, à medida que eu caminhava, aparecia de novo e de novo, sempre me antecipando, como se aguardasse minha passagem? E ainda, poderia mesmo ser aquele senhor já, chutando baixo, na casa dos sessenta anos, que eu havia visto à caminho do trabalho naquele ônibus?
Cada possibilidade em que pensava, ironicamente, se mostrava cada vez menos possível. Eu de fato contestara que havia chegado à uma fase crucial de minhas incongruências psicológicas e agora precisava me preocupar em visitar um psiquiatra. Marquei uma consulta para averiguar que medidas precisavam ser tomadas antes que eu enlouquecesse de vez. Estava determinado a tratar esse problema o quanto antes e, mais célere ainda, talvez organizar minha vida. Quem diria? Ali estava eu na sala de espera refletindo sobre a que ponto havia chegado após minha atormentada adolescência. Talvez havia chegado a hora de finalmente mudar o rumo que minha vida havia tomado. “Hora de sair do fundo do poço”, disse à mim mesmo. Com o tratamento desta maldição que vinha atormentando meu psicológico, eu poderia finalmente começar a compensar todos os anos em que perdi me afundando cada vez mais.
Ouvi meu nome finalmente ser chamado. Era chegada a hora. Levantei, tentando disfarçar a animação que tomara conta de meu corpo ao refletir sobre como daqui pra frente as coisas poderiam mudar e fui direto à entrar na sala do psiquiatra, o homem que me ajudaria a dar o pontapé inicial para uma nova vida. Pobre de mim, que não sabia o que me aguardava.
Logo ao entrar na sala do doutor, meu olhar subitamente foi traçado até sua vestimenta, e ali estava eu, estupefato, enquanto encarava o terno cor de âmbar que ele usava. Fiquei olhando aquilo por cerca de um minuto, parado em frente ao homem que me chamava com receio, e perguntava se eu estava bem. Sem palavras, assim que voltei a tomar controle de meus movimentos, caminhei em passos curtos e silenciosos até o vaso de flores, situado em um canto da sala, acima de uma pequena mesa com espaço apenas para o objeto. Chamando por meu nome e demonstrando preocupação com minhas atitudes sem pretexto, ele levantou-se, deu a volta em sua mesa e veio até mim. Eu agora encarava o vaso de flores, apertando notavelmente minha mão, com punhos cerrados, deixando transparecer meu ódio com a situação em que eu estava inserido.
O maldito estava zombando de mim. Meu ódio se elevou ainda mais quando cheguei à conclusão que, no momento que estava de costas naquele beco, provavelmente estava sorrindo escondido, apenas esperando que eu caísse na perversa armadilha que havia preparado. A armadilha que me levaria até meu perseguidor, como um rato indo em direção à ratoeira.
–Você é um ótimo manipulador, fez tudo direitinho, esperando que não sobrasse alternativas de fuga para mim. Mas creio que sua autoconfiança acabou te fazendo agir inocentemente.
Eu disse ao psiquiatra que, estático, não me respondeu nada. Concluí que ele estava em choque ao perceber o quão ingênuo foi ao me levar à sua clínica, acreditando que eu não lembraria daquele maldito terno. Ou talvez ele esperava que eu lembrasse e queria isso. Bem, não importava. Procurei não perder mais tempo pensando que plano diabólico me preparara. Rapidamente tomei posse do vaso de porcelana e o desferi contra o doutor que, sem nem ao menos poder vislumbrar o que o atingira, foi ao chão no primeiro golpe. O vaso se quebrou em vários pedaços. Minha mão sangrou com os cacos que a perfuraram, mas eu mantive a posse de um pedaço do vaso que havia sobrado e que era suficiente em tamanho para ser usado como arma. Subindo no corpo do psiquiatra, que agora estava desfalecido com um sangramento em sua testa, desferi múltiplos golpes perfurantes com o pedaço de porcelana que estava em minha mão. Desferi primeiro naquele terno âmbar, que desde que minha perseguição havia começado, não saia mais de minha cabeça e me enlouquecia aos poucos, em cada pensamento sobre ele. Observei que o terno havia ganhado um novo brilho em meio aos gritos agonizantes de seu usuário. Comecei a golpear a sua garganta em seguida, e o fiz até ter certeza de que não mais respirava.
Acreditei que finalmente havia obtido a minha vitória. Minha vida tomou um rumo que eu até então nunca havia imaginado. Antes de meu olhar se deparar com o terno que aquele psiquiatra usava, eu acreditava que sairia daquela clínica pronto para obter a alegria que me havia sido roubada no passado, mas a realidade acabou sendo outra. A alegria momentânea de vencer meu inimigo ficou dentro daquela sala, e de lá não mais saiu. Após o ocorrido, fui levado pelas autoridades e aqui estou. Refletindo nesta cela escura sobre o brilho que eu havia visto aquele terno cor de âmbar irradiar no momento de minha vitória contra o que eu acreditava ser meu perseguidor. Acreditava, pois agora, na desolação de minha consciência, voltei a ser atormentado. Ó céus, tamanha minha decepção, tamanha minha vergonha! Aquele brilho que agora o terno irradiava era o brilho escarlate do sangue inocente!
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O Terno de Âmbar
Mystery / ThrillerO que você faria ao perceber que está sendo seguido e que seu perseguidor aparenta estar sempre um passo à sua frente?