Capítulo III

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O pai de Teresa não embicaria na impureza do sangue do corregedor, se o ajustarem-se os dois filhos em casamento se compadecesse com o ódio de um e o desprezo do outro. O magistrado mofava do rancor do seu vizinho, e o vizinho malsinava de venalidade a reputação do magistrado. Este sabia da injuriosa vingança em que o outro se ia despicando; fingia-se invulnerável à detração; mas de dia para dia se lhe azedava a bílis; e é de crer que, se o não contivessem considerações da família, sofreria menos, desabafando pela boca dum bacamarte, arma da predileção dos Botelhos Correias de Mesquita. Seria impossível o reconciliarem-se.

Rita, a filha mais nova, estava um dia na janela do quarto de Simão, e viu a vizinha rente com os vidros e a testa apoiada nas mãos. Sabia Teresa que era aquela menina a mais querida irmã de Simão, e a que mais semelhança de parecer tinha com ele. Saiu da sua artificial indiferença, e respondeu ao reparo de Rita, fazendo-lhe com a mão um gesto e sorrindo. A filha do corregedor sorriu também, mas fugiu logo da janela, porque sua mãe tinha proibido às filhas de trocarem vistas com pessoa daquela casa.

No dia seguinte, à mesma hora, levada da simpatia que lhe causara aquele gesto de amizade, tornou Rita à janela, e lá viu Teresa com os olhos fitos na sua, como se a estivesse esperando. Sorriram-se com resguardo, afastando-se a um pouco do peitoril das janelas; e assim, ambas de pé, no interior dos quartos, se estavam contemplando. Como a rua era estreita, podiam ouvir-se, falando baixo. Teresa, mais pelo movimento dos lábios que por palavras, perguntou a Rita se era sua amiga. A menina respondeu com um gesto afirmativo, e fugiu, acenando-lhe um adeus. Estes rápidos instantes de se verem repetiram-se sucessivos dias, até que, perdido o maior medo de ambas, ousaram demorar-se em palestras a meia voz. Teresa falava de Simão, contava à menina de onze anos o segredo do seu amor, e dizia-lhe que ela havia de ser ainda sua irmã, recomendando-lhe muito que não dissesse nada à sua família.

Numa dessas conversações, Rita descuidara-se, e levantou de modo a voz que foi ouvida de uma irmã, que a foi logo acusar ao pai. O corregedor chamou Rita, e forçou-a pelo terror a contar tudo que ouvira à vizinha. Tanta foi sua cólera, que, sem atender às razões da esposa, que viera espavorida dos gritos, correu ao quarto de Simão, e viu ainda Teresa à janela.

— Olé! — disse ele à pálida menina. — Não tenha a confiança de pôr olhos em pessoa de minha casa. Se quer casar, case com um sapateiro, que é um digno genro de seu pai.

Teresa não ouviu o remate da brutal apóstrofe: tinha fugido aturdida e envergonhada. Porém, como o desabrido ministro ficasse bramindo no quarto, e Tadeu de Albuquerque saísse a uma janela, a cólera do doutor redobrou, e a torrente das injúrias, longo tempo represada, bateu no rosto do vizinho, que não ousou replicar-lhe.

Tadeu interrogou sua filha, e acreditou que foi causa à sanha de Domingos Botelho estarem as duas meninas praticando inocentemente, por trejeitos, em coisas de sua idade. Desculpou o velho a criancice de Teresa, admoestando-a que não voltasse àquela janela.

Esta mansidão do fidalgo, cujo natural era bravio, tem a sua explicação no projeto de casar em breve a filha com seu primo Baltasar Coutinho, de Castro Daire, senhor de casa, e igualmente nobre da mesma prosápia. Cuidava o velho, presunçoso conhecedor do coração das mulheres, que a brandura seria o mais seguro expediente para levar a filha ao esquecimento daquele pueril amor a Simão. Era máxima sua que o amor, aos quinze anos, carece de consistência para sobreviver a uma ausência de seis meses. Não pensava errado o fidalgo, mas o erro existia. As exceções têm sido o ludíbrio dos mais assisados pensadores, tanto no especulativo como no experimental. Não era muito que Tadeu de Albuquerque fosse enganado em coisas de amor e coração de mulher, cujas variantes são tantas e tão caprichosas, que eu não sei se alguma máxima pode ser-nos guia, a não ser esta: "Em cada mulher, quatro mulheres incompreensíveis, pensando alternadamente como se hão de desmentir umas às outras". Isto é o mais seguro; mas não é infalível. Aí está Teresa que parece ser única em si. Dir-se-á que as três da conta, que diz a sentença, não podem coexistir com a quarta aos quinze anos? Também o penso assim, posto que a fixidez, a constância daquele amor, funda em causa independente do coração: é porque Teresa não vai à sociedade, não tem um altar em cada noite na sala, não provou o incenso doutros galãs, nem teve ainda uma hora de comparar a imagem amada, desluzida pela ausência, com a imagem amante, amor nos olhos que a fitam, e amor nas palavras que a convencem de que há um coração para cada homem, e uma só mocidade para cada mulher. Quem me diz a mim que Teresa teria em si as quatro mulheres da máxima, se o vapor de quatro incensórios lhe estonteasse o espírito? Não é fácil, nem preciso decidir. E vamos ao conto.

Amor de Perdição (1862)Onde histórias criam vida. Descubra agora