COMO O ESTADO SE ETERNIZA

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Uma vez estabelecido o estado, o problema do grupo ou “casta” dominante passa a ser o de como manter o seu domínio. Embora o seu modus operandi seja o da força, o problema básico e de longo prazo é ideológico. Pois para continuar no poder, qualquer governo (não simplesmente um governo “democrático”) tem de ter o apoio da maioria dos seus súditos. E esse apoio, vale observar, não precisa ser um entusiasmo ativo; pode bem ser uma resignação passiva, como se se tratasse de uma lei inevitável da natureza. Mas tem de haver apoio no sentido de algum tipo de aceitação; caso contrário, a minoria formada pelos governantes estatais seria em última instância sobrepujada pela resistência ativa da maioria do público.

Uma vez que a depredação tem necessariamente de ser mantida por um excedente da produção, é um fato necessariamente verdadeiro que a classe que constitui o estado — a burocracia estabelecida (e a nobreza) — tem de ser uma pequena fração minoritária no território, embora possa, claro, comprar aliados entre os grupos importantes da população. Como tal, a principal tarefa dos governantes é sempre a de assegurar a aceitação ativa ou resignada da maioria dos cidadãos.

Claro que um dos métodos para assegurar o apoio é por meio da criação de interesses econômicos legalmente garantidos. Como tal, o rei sozinho não pode governar; ele precisa de um grupo considerável de seguidores que desfrutem os privilégios do domínio, por exemplo, os membros do aparato estatal, como a burocracia em tempo integral ou a nobreza estabelecida. Mas ainda assim isto assegura apenas uma minoria de apoiadores fervorosos, e até a compra essencial de apoio por meio de subsídios e outras concessões de privilégios não é suficiente para obter o consentimento da maioria. Para produzir esta aceitação crucial, a maioria tem de ser persuadida por uma ideologia de que o seu governo é bom, sábio e, pelo menos, inevitável e certamente melhor do que outras possíveis alternativas. A promoção desta ideologia entre o povo é a tarefa social vital dos “intelectuais”. Pois as massas não criam as suas próprias ideias, ou sequer pensam de maneira independente sobre estas ideias; elas seguem passivamente as ideias adotadas e disseminadas pelo grupo de intelectuais. Os intelectuais são, por isso, os “formadores de opinião” da sociedade. E dado que é precisamente de uma modelagem da opinião aquilo de que o estado desesperadamente precisa, a razão da milenar aliança entre o estado e os intelectuais torna-se clara.

É evidente que o estado precisa de intelectuais; mas não é algo tão evidente por que os intelectuais precisam do estado. Posto de forma simples, podemos afirmar que o sustento do intelectual no livre mercado nunca é algo garantido, pois o intelectual tem de depender dos valores e das escolhas das massas dos seus concidadãos, e é uma característica indelével das massas o fato de serem geralmente desinteressadas de assuntos intelectuais. O estado, por outro lado, está disposto a oferecer aos intelectuais um nicho seguro e permanente no seio do aparato estatal; e, consequentemente, um rendimento certo e um arsenal de prestígios. E os intelectuais serão generosamente recompensados pela importante função que executam para os governantes do estado, grupo ao qual eles agora pertencem.

A aliança entre o estado e os intelectuais ficou simbolizada, no século XIX, no desejo ardente dos professores da Universidade de Berlim em formar o “apoio intelectual da Casa de Hohenzollern”. Já no século XX, podemos observar o comentário revelador feito por um eminente acadêmico marxista sobre o estudo crítico do antigo despotismo Oriental realizado pelo Professor Wittfogel: “A civilização que o Professor Wittfogel ataca tão veemente foi uma civilização que colocou poetas e eruditos no funcionalismo público”. Dentre inúmeros exemplos, podemos citar o desenvolvimento recente da “ciência” da estratégia a serviço do principal braço governamental no uso da violência, o aparelho militar. Outra venerável instituição é a do historiador oficial — ou o historiador “da corte” —, dedicada a difundir a visão dos governantes acerca das suas ações e das dos seus predecessores.

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