Liberdade Clandestina

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Um passo de cada vez é o necessário para se alcançar o alvo. Ele, suportando os 80 anos, detestava que outros o tomassem por criança. Ouvia sempre o mesmo: “Deixe-me ajudá-lo.” “Não tão rápido.” “Segure em meu braço que o guiarei”, esta ação solícita aparentava uma afronta. Durante a vida inteira, fez suas escolhas, importando exclusivamente com suas decisões. A memória falhou diversas vezes nas últimas horas, contudo não era motivo de preocupações excessivas. Queriam tratá-lo como bebê. Forçando-o comer e tomar banho contra sua vontade; ingerir remédio quando se levanta, depois de comer, antes de dormir. “Quanta chatice!”, pensava. Porém, ninguém o seguraria enquanto suas pernas pudessem se mover. Com o plano em mente a ser executado — ir à feira, fingiu estar dormindo quando sua filha entrou no quarto. Desde que ela passou a tomar conta dele, seus cuidados exagerados com sua segurança o sufocavam. Costumeiramente, ela o averiguava antes de ir à padaria comprar pão. Astuto, fingiu que dormia. Assim que ouviu o barulho da porta batendo se levantou na velocidade que a idade permitia. Espiando pela janela, o velhote certificou de que ela saiu de casa. Pronto, pegou sua bengala e a sacola colorida. Compraria os legumes que quisesse!

Com o pé na calçada o cheiro da liberdade ardeu em suas narinas preenchendo os pulmões de orgulho. Saía só, livre de acompanhante. As buzinas e os motores soavam abafados. Sem pressa seguia pela calçada em direção a faixa de pedestre. Cauteloso, aguardou o sinal abrir. Deveria atravessar no verde, claro, ou seria no vermelho? Por tanto tempo, de modo involuntário, não se preocupava com este detalhe. O sinal mudou e, ele enxergava borrões. Incerto da cor, se manteve imóvel à espera. Em sua percepção os barulhos diminuíram e, o semáforo deveria estar fechado; aberto para pedestre. Tranquilamente, percorria seu trajeto. A sensação de liberdade deu lugar ao receio. Concentrou-se nas verduras que compraria e, por que não o pastel de Dona Lenita? De repente um grito estridente vindo de seu ponto de partida o fez olhar para trás. Seu coração estremeceu com a força emitida pelas cordas vocais que o pôs em alerta.

Não tinha certeza o que era aquilo. Porém, foi assustador. No mesmo momento em que parou, no meio da rua, um vulto preto passou colado em seu corpo, fazendo com que se desequilibrasse. Seus ossos frágeis bateram com vigor na dureza do asfalto trazendo-lhe muita dor. Não conseguia levantar do chão, a contragosto, admitiu que precisaria de ajuda. E, o que mais detestava, acontecia agora, uma aglomeração de indivíduos solidários ao seu redor.

Um rosto conhecido surgiu dentre a multidão bisbilhoteira. Ela tentou erguê-lo, mas temendo algo pior decidiu esperar pelo SAMU. Os paramédicos, com muito cuidado, o levaram para o hospital mais próximo.

Depois de algum tempo, acordou confuso. Enxergou uma moça dormindo na cadeira de acompanhante. Gradualmente, se lembrou do que aconteceu. O timbre daquele grito familiar veio de sua filha.

Pareceu que a vida lhe deu um golpe, do sabor da liberdade vieram dores, que doíam em si e refletiam em outros.

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⏰ Última atualização: Jun 06, 2020 ⏰

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