Capítulo 2 - Abe - Parte 2

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Abe

Ao chegar na arena, Abe vê seus colegas sentados nas arquibancadas que cercam o campo de terra batida. Ogu está parado de pé no meio da arena. Sob o olhar dos aprendizes, ele exibe um semblante sério, como sempre. Ele olha de relance para Abe e Okko quando eles chegam. Os dois encontram lugares vazios e se sentam.

Machucados e abatidos, os companheiros de Abe parecem ainda mais novos do que são.

- Os últimos dias têm sido intensos – Ogu diz. – Mais do que o comum. Mas saibam que já estamos quase no fim. Em algumas semanas, vocês serão oficialmente soldados da Guarda dos Mares. Voltem para as suas barracas e descansem. Quero vocês preparados para o novo teste que começa amanhã.

O discurso prossegue listando o nome dos aprendizes que não passaram no teste e não continuarão no treinamento. Ninguém sabe o que acontece com os reprovados e ninguém ousa perguntar.

Quando o Ogu termina o seu discurso, os aprendizes da Guarda dos Mares dirigem-se de forma ordeira ao seu acampamento, montado a apenas alguns metros da arena de treino. Gemidos de dor e reclamações, embora contidos, podem ser ouvidos por todo o caminho.

Abe olha em volta para as centenas de aprendizes. São todos jovens, nenhum com mais de quinze anos de idade, treinados desde crianças para se tornarem soldados. Se eles tivessem escolha, nenhum deles estaria aqui. Dia e noite, os aprendizes da Guarda dos Mares treinam e testam os limites de seus corpos. Muitos não aguentam.

Ao chegarem no acampamento, um grupo de aprendizes se reúne em volta de um dos cadeirões onde a comida é preparada. Eles parecem discutir sobre algo. Abe e Okko se aproximam do grupo.

- Alguém tem que caçar o jantar – um dos aprendizes diz. Ele olha para Abe. – Você parece estar bem. Por que não vai?

- Eu não estou nada bem – Abe diz. – Estou cansado e machucado. Tem frutas e raízes de ontem, comam isso. Eu não vou sair por aí caçando a essa hora.

- Nós precisamos comer bem hoje – Okko diz. – Você inclusive, Abe. Vamos lá, eu te ajudo.

Abe analisa por um momento os meninos ao seu redor. Todos têm rostos inchados e ensanguentados, e alguns precisam se apoiar nos seus companheiros de treino para conseguirem permanecer de pé.

- Está bem – Abe diz, bufando. – Eu caço, mas vocês vão preparar a comida. Já comecem a preparar a fogueira.

Abe e Okko pegam arcos e flechas e caminham mata a dentro.

- Quanto tempo você acha que ainda vai durar? – Abe pergunta, sussurrando para não espantar os animais.

- O teste de admissão? – diz Okko.

- Isso.

- Não sei. Dias, semanas. Não faço ideia. Eu sei tanto quanto você.

- Eu não aguento mais isso.

- Nem eu.

Abe ouve um barulho. Ele se ajoelha e sinaliza para Okko. A sua audição aguçada faz com que ele seja um dos melhores caçadores dentre os aprendizes. Desde pequeno, o seu olho esquerdo cego o forçou a depender da sua audição mais do que o normal.

Ele pega uma flecha e a posiciona no arco. Cuidadosamente, ele examina o seu entorno, procurando pela origem do barulho que ouviu. Ele torce para que seja um javali, mas o que aparece em meio à vegetação é uma pantera.

Okko dá um resmungo que parece ser de surpresa.

- Só me faltava essa – ele diz.

Abe, por sua vez, se concentra no predador à sua frente. O animal anda em sua direção com passos cuidadosos, olhando diretamente em seus olhos. Ele já viu esse olhar milhares de vezes nos olhos dos demais aprendizes. É um olhar que exibe um misto de medo, raiva e um instinto implacável de sobrevivência. Abe sabe o que isso significa. Ele puxa a corda de seu arco e espera que o animal dê o bote.

- O que você está fazendo? – Okko diz. – Nós temos que sair de perto desse bicho!

Abe sabe que é tarde demais para fugir. Ele não vai conseguir correr mais que a pantera e ela não vai simplesmente deixar ele ir embora. Sua única opção é encará-la.

- Abe! Você está me ouvindo?

A pantera se aproxima lentamente, seus olhos fixados nos de Abe. Após dar mais alguns passos, ela dá o bote. Ela pula em direção a Abe que, sem hesitar, solta a flecha. Os dois caem no chão, com o animal por cima.

- Abe! – Okko grita, lançando mais uma flecha no corpo da pantera.

Abe empurra o corpo do animal para o lado e se levanta com dificuldade. Sua flecha atingiu em cheio o coração da fera.

- Você está bem? – Okko pergunta, ajudando Abe a se levantar.

- Eu estou bem, eu acho.

- Olha para isso! Uma pantera! Eu nunca comi uma pantera. O pessoal não vai acreditar!

Das Cinzas da Era PerdidaOnde histórias criam vida. Descubra agora