Sou alguém para você.

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Juntei os trapos. E se eu recolhesse tudo que tenho de material em uma mão estaria a menor das minhas bagagens, roupas, sapatos e algumas fotos. No meu peito tudo de mais pesado, anos e anos de dedicação. Estou a um passo de sair dessa casa. As paredes parecem mais próximas, quase tão perto que são capazes de me empurrar para fora. E esse chão de madeira velha que range como uma vizinha fofoqueira, sempre te entregava quando você chegava nas madrugadas. Olhando por cima do ombro aquele sofá vermelho que sua mãe te deu, com uma parte do acolchoamento faltando no braço esquerdo. As paredes da sala com infiltração parecem formar o desenho de um rosto triste, e parada ali me vejo diante a um espelho. Vou sentir falta das cortinas amarelas, do banheiro com papel de parede florido. Vou sentir falta da cama que apoiávamos em um tijolo, esse que roubamos da casa ao lado. Até dos lençóis que pinicavam durante toda a noite. Sendo bem sincera, essa casa tinha tanta cor, tanta vida em suas veias. A janela da sala iluminava nossas manhãs, e toda aquela luz fazia você ficar ainda mais radiante. De tarde quando o sol começava a nos deixar, aquela cor laranja se misturava a cor da sua pele e te dava ainda mais brilho. Sem absolutamente nenhum esforço eu sou capaz de sentir o gosto do chá de limão que você preparava, das torradas com geleia, eu ainda sinto na minha pele e em cada pelo os arrepios que você me causava quando passava esses dedos macios nas minhas costas para me fazer dormir. E quando eu cheguei naquele dia você estava em estase, arrumando o nosso jardim, uma euforia que me contagiou, e mesmo eu que nunca gostei de terra me animei em plantar vida ao seu lado. E logo eu que nunca fui paciente esperei brotar, tudo para ficar com você. E quando o verão saia de férias, e as outras estações apareciam como a visita de uma tia querida, a gente também ganhava outro tom. Nosso próprio ritmo. Era divertido, só com você, refazer todas as memórias. Sentar no balanço que você colou na árvore lá trás. Andar levantando as folhas que caíram. E quando o frio chegava seu calor aquecia mais que qualquer lareira. Viraria qualquer noite em seus braços assistindo os mesmos programas na televisão. Só com você. Colocar shampoo no seu cabelo durante o banho, apenas para ver você se banhar novamente. Roubar suas meias, elas sempre foram mais confortáveis que as minhas. Passar meu dia em uma grande competição, quem passa mais tempo sem piscar, quem bebe o copo com água mais rápido, quem chega primeiro no sofá. Eu não planejei sua chegada, embora eu sempre soubesse que queria ser alguém para alguém. E durante esses três anos, você foi o meu melhor alguém. O melhor que eu poderia ter tido. O destino soube como te escolher para mim. Só você. Foi capaz de me fazer entender que o meu jeito de amar não era o problema, durante todo esse tempo você foi feliz em recebe-lo. Capaz de me fazer viver tudo, diferente de dizer que me amava, você me fez sentir amada da forma mais pura. E mesmo que existam tanto tipos diferentes de porquês. Não existe um que seja capaz de explicar. Por que você? Qual o porquê de você ir? E seja lá quem desejou isso, desejou sozinho. Eu não fui consultada. Porque se fosse, eu pediria para ir primeiro. Há alguém brincando com nossos corpos como marionetes. Alguém que está magoado. E ele ceifou sua vida em um cruzamento qualquer. Não teve delicadeza em te levar, ele quis que eu soubesse. Como em uma peça de teatro, em seu último ato, e eu fiquei ali parada inerte. Incapaz. Ver você se deitar naquela caixa de madeira envernizada, tudo soava como uma música. E quando me perguntavam como eu estava, pareciam cantar a sua partida. Da janela do carro, todo o cenário foi trocado. O frio agora é cortante e depressivo. A luz que entra pela janela é para me cegar. A tv congelou, mesmo que eu tente mudar sempre é a mesma coisa passando. Todos os canais são saudade de você. E o banheiro é molhado, como a poça do seu sangue onde eu me ajoelhei gritando para que você ficasse. A água caindo são as lágrimas da sua mãe e do seu pai escorrendo por mim. O lençol enfia os cacos de vidro da janela do seu carro em meu corpo. O chá ficou sem sabor. A comida parece velha. A louça se acumula por toda a casa. Seu jardim morreu, e os legumes foram devorados por roedores. E eu sei que eles me olham dormir, esperando o momento para comer os meus pedaços. Para festejar no meu cadáver. Pelo menos haverá alguma felicidade. E como eu comecei dizendo, um passo. É tudo que preciso para sair do túnel. Infelizmente, mesmo que tudo nessa casa queira me expulsar. Me ver viver fora daqui. Já há uma parede com a mancha do meu sangue. Já existe uma poça para mim. Uma lápide. E algumas lágrimas para eu levar nessa partida. Porque amor, eu nunca pretendi deixar nosso lar. E essas últimas semanas eu estive apenas assistindo nesses cômodos nossos fantasmas felizes. Não haveria uma realidade para mim onde eu desejasse ser alguém para um alguém que não fosse você. Deixo esse mundo com um barulho, exatamente da mesma forma que eu me lembro da sua partida, mas agora não tem carro para bater em nós.
Apenas o som de um disparo.

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