𝐀 𝐉𝐀𝐍𝐄𝐋𝐀 𝐐𝐔𝐄𝐁𝐑𝐀𝐃𝐀 𝐃𝐎 𝐒𝐄𝐆𝐔𝐍𝐃𝐎 𝐀𝐍𝐃𝐀𝐑

são só memórias, não histórias

toda vez que subo no sótão para a limpeza rotineira, não consigo encarar a janela trincada. as memórias amargas de tudo que aconteceu no segundo andar se apoderam dos meus sentidos e é como se eu tivesse sido teletransportada de volta ao pesadelo.

a governanta da casa costumava dizer que se tratam de memórias, não histórias, porque quando damos um título maior às coisas, parece que o evento por si só é enorme, lembrado por pessoas que não têm nada a ver com o que aconteceu. eu queria muito fazer parte dessas pessoas avoadas à toda maldade que acontece dentro dessas paredes há mais de três gerações.

às vezes, tenho pesadelos tão vivos quanto a realidade, e acordo desesperada com a fronha do travesseiro completamente encharcada. nesses sonhos, vovó ainda existe, cintilante e brilhante como sempre foi, contando suas experiências pós-guerra com um sentimento melancólico, obviamente. é como uma aparição, ela vem todas as noites e me faz lembrar de momentos que nunca vivi e isso me desperta calafrios crônicos por saber que não posso voltar atrás e mudar as coisas, resgatar vovó e cobrir o trinco da janela.

esfrego o chão, passo espanador pelos móveis e pano nas janelas, sempre evitando a trincada, porque eu sei que se decidir me aproximar, ela vai quebrar em pedaços tão pequenos como o coração de vovó. ouço o som de tiros, mas sei que é apenas minha imaginação pregando peças. a governanta sobe os degraus e para no último, segurando o corrimão com força. ela também sabe tudo o que vêm acontecendo por aqui desde antes de eu nascer e sei que se eu perguntar sobre suas memórias vou me arrepender completamente.

e é por isso que eu só sigo com a limpeza, ignorando a janela do segundo andar, a governanta me ajudando a mover os armários de volta para à parede. respiro fundo, observo como tudo ficou tão limpo, mas sei que nem a maior das faxinas vai apagar os horrores dessa maldita casa.