Prólogo - cinco anos antes do agora

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O cheiro forte e gostoso de café recém-saído da cafeteira chegou até mim. Inspirei fundo e olhei para a minha xícara, onde meu próprio café tinha esfriado há uma boa meia hora. Era uma caneca tosca, amarela com bolinhas marrons. Todas naquele cafezinho seguiam o mesmo estilo: coloridas e bregas, algumas tinham ilustrações de extraterrestres cabeçudos e verdes. Elas combinavam com o ambiente igualmente colorido, brega e aleatório.

Ergui a xícara aos lábios e tomei, mesmo estando ruim; tinha feito o pedido apenas para que a atendente (que também era a dona e única funcionária) não ficasse me olhando torto. Assim que ela o deixou na mesa eu mudei de ideia quanto a toma-lo. Café sempre fazia meus dedos tremerem levemente.

Olhei para o relógio velho atrás de mim; fazia quase uma hora que eu estava sentado ali. As luzinhas de Natal que rodeavam todo o lugar, e que eram uma das poucas fontes de iluminação, começaram a me dar dor de cabeça. Mais vinte minutos, disse a mim mesmo. Eu esperaria mais vinte minutos por sabe se lá Deus o que a Estela queria me dizer. Ela parecia ansiosa hoje mais cedo na escola, e para qualquer outra pessoa o jeito eufórico como agia poderia ser estranho, ou indicar que estava querendo compartilhar algo realmente ruim ou muito importante. Mas eu conheço Estela desde que a sua família se mudou para casa em frente a minha há seis anos. Eu sabia que ela poderia muito bem estar animada daquela forma tanto por ter descoberto como construir uma máquina do tempo caseira, quanto por ter colado uma nova estrela que brilha no escuro no teto do quarto.

Nossa amizade foi quase instantânea desde o primeiro dia que voltamos para a casa juntos depois da aula. Eu me encantei pela forma esperançosa e livre como ela encarava as coisas, como falava de tudo. Cada parte dela conseguia enxergar possibilidades, até mesmo naquele trecho de quinze minutos entre nossas casas e a escola (a única da cidade, por sinal). Mesmo ainda sendo um pirralho, eu percebia o quanto aquela cidade - suja e esquecida, quase fora do mapa e cuja notícia mais interessante era de novas marcas nas plantações de milho - parecia pequena demais para alguém como ela.

Pode soar patético, mas eu sempre me perguntei por que Estela gostava de estar perto mim. E desde que havíamos nos beijado pela primeira vez, há uns seis meses atrás, me perguntava como conseguimos chegar tão longe.

Eu não me considerava uma pessoa muito interessante. Na verdade, não sendo por Estela, eu quase não falava muito. Sempre me senti estranho ouvindo o som da minha própria voz: meio rouca e metódica, quase artificial. E nem meus próprios pais pareciam muito interessados em algo que que eu dissesse. Mas, mesmo que não ganhassem os prêmios de progenitores do ano, eu tenho que dar os créditos: pelo menos se davam ao trabalho de me dar uma vida mais ou menos decente. Os de Estela eram negligentes, para dizer o mínimo: o pai dela trabalhava num dos milharais ao redor da cidade, e a mãe, num dos bares no centro. Meu pai era professor de matemática, e minha mãe, uma fofoqueira. A semelhança entre eles era clara: estavam cansados de viver, não tinham nenhuma perspectiva. Esse é o único motivo plausível para qualquer pessoa querer permanecer naquele fim de mundo.

Estela e eu conversávamos sobre o que aconteceria depois que terminássemos a escola: queríamos ir embora, pra qualquer lugar longe dali! Ela dizia que iria estudar engenharia mecânica e que construiria foguetes – e que voaria num deles um dia. Eu pensava em fazer alguma coisa que envolvessem computadores e máquinas e o mínimo de contato com multidões. Nós dois moraríamos num lugar onde as pessoas não ficassem encarando, onde roupas coloridas fossem normais, e o escândalo da semana não fosse novas aparições de extraterrestres.

E onde as cafeterias ofereciam um café descente, não algo com gosto de água de batata.

Olhei para os meus tênis por debaixo da mesa. As estrelas que Estela havia desenhado ali com canetinhas duas semanas atrás estavam quase sumindo. Raspei o bico de um deles no chão quadriculado no lugar; bati os meus dedos na alça da caneca. Minhas unhas sempre foram pequenas porque eu não conseguia parar de roê-las.

Tentei me lembrar das coisas que aconteceram de duas semanas pra cá. Estela estava bem. Ela desenhou estrelas no meu tênis e me contou que daqui uns dias – essa noite! – haveria uma chuva de meteoros. Nós nos beijamos no chão do meu quarto antes de ela sair escondida pela janela. Foram nos dias que se seguiram que ela começou a ficar estranha e ansiosa. Em uma tarde depois da aula eu a convidei para almoçar na minha casa. Ela me deu um beijo no canto da boca e disse que precisava resolver umas coisas. Naquela noite, quando entrou para me ver, a barra da calça de segunda mão e os tênis estavam sujos de terra vermelha. O cabelo louro e crespo estava grudado na testa suada, como se ela tivesse corrido até ali.

Eu tentei não dar tanta atenção aquilo, até porque ela não parecia muito interessada em dar explicações. Estela sempre foi excêntrica e instável, e eu aprendi a respeitar isso, assim como ela respeitava meus momentos de introspecção. Mesmo quando me disse hoje de manhã que queria me ver na lanchonete da Senhora Malena, e que tinha algo a me contar e me mostrar, eu consegui me convencer de que não era nada. De que não havia nada de errado.

Mas com quase uma hora e meia de atrasado e meia xícara de café depois do horário combinado, meus dedos começaram a tremer e parecia haver um ventilador na minha barriga. Estela não se atrasava. Nunca.

Eu queria me levantar e ir procura-la, mas fiquei ali sentado esperando. Mesmo depois que consegui ver a luz da lua cheia entrando pelas vidraças embaçadas da lanchonete, eu esperei. Terminei o restante do café frio, e esperei.

E ela não apareceu.

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