Capítulo 14: Eu queria não precisar falar sobre isso

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Uma semana se passou em um total marasmo. Harry continuou escrevendo seu livro e Sam começou a montar um quebra-cabeças interminável, que encontrou em uma caixa embaixo da cama do quarto de hóspedes. Essa paz, no entanto, foi abalada com as notícias do caso de George Floyd, homem negro de 40 anos brutalmente assassinado por policiais na cidade de Minneapolis, que gerou diversos protestos e manifestações em combate ao racismo nocivo da força policial, responsável por tirar várias vidas com muito futuro pela frente. Logo o movimento "Black Lives Matter", ou "Vidas Negras Importam" tomou conta das redes sociais, com a revolta da comunidade negra com as injustiças praticadas há tanto tempo contra estes apenas por sua cor de pele. O movimento também envolveu pessoas de todas as raças, apoiadores da causa defendida, que foram às ruas para cobrar dos governantes medidas para acabar com essa violência. Apesar da pandemia enfrentada, fez-se necessária a quebra das regras de isolamento para dar voz à população, cansada do racismo que vigora até os dias atuais entre as instituições de autoridade. Harry e Sam aderiram ao movimento, tomando as dores, e na manhã de primeiro de junho, preparavam-se para participar de uma manifestação.

Ainda que ambos tivessem a pele branca, uniram-se aos manifestantes, cientes de que a luta contra o racismo não é uma luta apenas da população negra. Não trata-se de negros contra brancos, e sim de todos contra o racismo. Era a primeira vez que deixavam o apartamento desde o que aconteceu com Gabrielle, e muitos dos outros apartamentos também estavam vazios, tamanha a comoção que levou todos às ruas. Portando suas máscaras, água, documentos e cartazes, saíram pela porta principal do prédio, dirigindo-se ao local marcado para início da passeata, que findaria na prefeitura da cidade.

Assim que chegaram, começaram a marchar, entoando gritos pedindo justiça e igualdade. Conforme caminhavam, as falas tornavam-se mais altas e mais pessoas pareciam se juntar ao grupo, que tomava conta de uma das avenidas principais da cidade. A aglomeração fervorosa se aproximava da prefeitura da cidade quando depararam-se com um cordão formado por policiais intencionando barrar a chegada dos manifestantes até o ponto final. Harry e Sam, que se encontravam em um ponto da multidão do qual não conseguiam ter a visão do que acontecia próximo ao cordão de isolamento, começaram a se embrenhar em meio às pessoas até chegar na linha de frente. Harry se juntou a um grupo de pessoas brancas que tomaram a frente para proteger os líderes negros do movimento, os que guiavam a multidão, atuando como barreira entre estes e a força policial, para evitar confrontos violentos. Neste momento, os manifestantes ajoelharam-se e protagonizaram um minuto de silêncio em memória a todas as pessoas negras vítimas do sistema racista que vigora entre os membros do poder. Após algum tempo parados nesse local e sem intenção de ceder, os policiais receberam ordens para afrouxar a barreira, deixando-os passar e seguir a caminhada, que seguia de forma pacífica. Harry e Sam uniram-se novamente e prosseguiram na caminhada. Em dado momento, Harry envolveu Sam pela cintura com seu braço, e este retribuiu apoiando o braço ao redor do pescoço de Harry.

-Eu queria não precisar falar sobre isso. É inacreditável que em 2020 tenhamos que lidar com racismo. - Disse Harry.

-Infelizmente é necessário. É nossa obrigação ampliar a voz dessas pessoas, por tanto tempo marginalizadas. É hora de dar um basta.

-E se para nós essa situação gera indignação, imagine para as pessoas negras de fato, que sofrem diariamente com isso, e sentem na pele a discriminação por sua cor de pele.

-Eu sei, é muito triste. E por isso nós temos que nos unir.

-Não é justo, Sam. Por que isso continua acontecendo?

-São as cicatrizes de mais de 500 anos.

-500 anos! Será possível que a mentalidade humana não evoluiu nada nesse tempo? - Indignou-se Harry.

Sam apenas inspirou e expirou o ar sonoramente. Continuaram a caminhar até que em certo ponto encontraram Nancy, amiga do casal.

-Nancy!

-Vocês vieram! Obrigada!

-É nossa obrigação. Mas não é sobre nós, estamos aqui por vocês. - Disse Sam.

Harry segurou a mão de Nancy, e sorriu compadecidamente, conforme continuavam trilhando o caminho até a prefeitura. Ao chegarem, Nancy assumiu uma posição de destaque, subindo em um banco começou a discursar sobre suas vivências e a importância de não se calarem até conseguirem o que queriam. As frases que proferia eram seguidas de gritos de apoio e aplausos, e assim se procedeu até que um policial responsável pela segurança da prefeitura pegou em seu braço, ameaçando-a com voz de prisão. E foi aí que as coisas começaram a se intensificar. O policial não foi poupado das críticas dos manifestantes, que se juntaram para libertar Nancy de seus braços, e esta correu para Sam e Harry, seus únicos conhecidos entre a multidão. Mais uma prova de como a polícia tratava com diferença as pessoas por sua cor de pele ali, explícita e clara. Deixando ainda mais evidente a necessidade dos protestos para acabar com a violência policial contra pessoas negras, e não iam parar enquanto não conseguissem o que queriam. Diante disso, muitos outros policiais começaram a assumir uma posição mais violenta, e os manifestantes começaram a se dispersar. Já faltava quase uma hora para o fim do dia quando Harry e Sam chegaram em casa, levando Nancy consigo para passar a noite. Os vídeos do discurso de Nancy tomaram conta das redes sociais rapidamente, deixando-a satisfeita por ter passado sua mensagem de maneira eficaz. Ainda havia muito o que melhorar, mas ver a repercussão que seu vídeo teve e o apoio que recebeu lhe deu esperança de um futuro próspero.

Estavam todos exaustos, então assim que chegaram ao apartamento revezaram-se para ir ao chuveiro e, já livres do que traziam das ruas, foram dormir, Harry e Sam no quarto principal e Nancy no quarto de hóspedes, repousando para mais um dia de protestos quando o sol voltasse a despontar.

N.a. // Justice for George Floyd. Justice for João Pedro. Justice for Agatha Felix.

I see you. I hear you. I love you.

#BlackLivesMatter #VidasNegrasImportam

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