Preliminares

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O dia dos namorados com certeza traz uma vibe gostosa para os casais, mesmo sabendo que todas aquelas flores e balões fofos têm o único intuito de vender alguma coisa. O cenário é importante para as nossas histórias. Era assim que Iara pensava. Por isso sempre gostava de arrumar sua casa impecavelmente. Chegar no seu cantinho e encontrar um ambiente limpo e organizado sempre lhe dava uma paz de espírito, uma felicidade tranquila e acolhedora. Mas hoje não seria assim.

Como de rotina, Iara saiu bem cedinho de casa para ir trabalhar. Seu lar era uma pequena chácara que herdara da avó. Apesar da herança ter causado discórdia entre os seus tios e tias que acharam a divisão injusta, ela aceitou de bom grado o presente que Dona Joana lhe deixou. Não lhe causava nenhum incômodo na consciência, mesmo sabendo que a avó não tinha mais nada para deixar para os filhos. Desde pequena Iara adorava aquele pedacinho de terra. E ajudou a avó a plantar cada metro quadrado que foi possível.

Quando Dona Joana conseguiu construir sua casinha, Iara ainda era menina com uns sete anos mais ou menos. Mesmo assim, desde do começo deixou sua marca no lugar. Para começar, foi ela que acompanhava a avó quando essa ia buscar mudas de flores nas casas das comadres. Isso quando não era a própria Iara que, durante a volta da escola, batia ao portão das casas das pessoas da cidade e pedia uma mudinha de uma flor bonita.

Aos poucos a casa foi se enchendo de vasos e flores. Mas o colorido dos vasos não era a única tarefa das duas. Também estavam empenhadas em arrumar sua horta, construção obrigatória em qualquer casa, na opinião delas. Da mesma forma que conseguiram suas mudas de flores foram, pouco a pouco, adquirindo mudas e sementes de hortaliças para compor a horta e a refeição da família. Quando Iara tinha treze anos a horta de Dona Joana já era referência na cidade. E, além de ajudar a cuidar das plantinhas, Iara também se encarregava de levar o excedente das folhosas para as comadres, as mesmas que forneceram tantas mudinhas.

Iara passava tanto tempo com a avó que pegou a paixão da velha por aquele pedaço de chão e pela casinha simples. Sempre se preocupava com a limpeza da casa e com possíveis reparos que precisavam ser feitos. Era tão minuciosa nos seus cuidados e tão insistente com as pessoas para poder saná-las que em pouco tempo um pedreiro amigo da família, o seu Chico, lhe ensinou a fazer vários serviços de reparo para que ela mesma pudesse resolver as pendências da casa. Foi assim que conseguiu facilmente seu emprego numa loja de materiais de construção depois de ter se formado. Sabia o nome e a função de quase tudo que os pedreiros e os construtores precisavam.

E no fatídico dia de hoje, até mesmo no seu trabalho havia balões vermelhos e uma faixa cheia coraçãozinhos com os disseres "O lugar certo para construir o seu amor é aqui!". É claro que ninguém vem à uma loja de materiais de construção por causa de uma faixa e balões vermelhões. Mas mesmo os seus clientes habituais estavam mais animados durante o dia.

Aquele clima gostoso de dia dos namorados tinha invadido toda a cidade. Mas deixava Iara com um sentimento misto de alegria e tristeza, já que passaria a noite sozinha. Por isso ela estava meio alegre e meio pra baixo em meio aquele alvoroço todo. Enquanto isso, seus clientes não paravam de comentar seus planos.

- Hoje eu levo a patroa para comer fora! Ela vai até deixar as crianças na casa da irmã. Já comprei até a rosa!

"Mas gente, são 10 horas da manhã ainda, essa rosa dura até a noite?". Como não conseguiria desfrutar a emoção dos clientes, Iara pensava nas frivolidades das conversas.

- Vou terminar aqui rapidinho que tenho que chegar cedo em casa para tomar banho e levar a cheirosa num cineminha hoje.

"Ou eles vão na matinê das 18h ou ele demora duas horas pra tomar banho". Implicar com os planos dos casais foi a tábua salva-vidas de Iara durante o dia.

- Essa coisa de ser romântico não é comigo, vou levar só uns bombons e pronto! Ainda vou comer junto. Haha!

"Tomara que morra engasgado". Com esse último pensamento, Iara decidiu que era melhor parar de prestar atenção na conversa dos outros e ir almoçar.

A tarde passou rápida e quanto mais se aproximava a hora de ir embora, mais triste Iara ficava. Chegar em casa numa data tão especial e encontrar ela vazia seria bem desolador. Alguns dos seus amigos solteiros até a chamaram para sair depois do serviço. Eles iriam beber uma cerveja num bar que não seria ponto para casais. Mas sair com os amigos no dia dos namorados não era negócio para Iara. Com certeza eles iriam beber bastante e paquerar alguém do bar enquanto ela bebia um suquinho de limão e tomava conta para que ninguém passasse mal ou sumisse com algum estranho.

Resolveu que iria para casa no final do dia. Iria aguar a horta e suas flores. Depois tomaria um banho quente e comeria qualquer coisinha pra matar a fome. Feito isso já iria estourar um balde de pipoca, pegar um copão de refri e escolheria um filme de comédia bem bobinho para esquecer a data solitária.

Não era o ideal, mas estaria bom para aquele ano. Quando pudesse faria uma bela comemoração do dia dos namorados. Com certeza ela iria encomendar um bolo de prestígio e também comprar um laço rosa bem grandão e se enrolar nele para ser o presente. Era cliché, mas ela adorava a ideia e nunca teve a oportunidade, ou melhor, a coragem botá-la em prática. Agora que não podia, ela tinha certeza que iria conseguir. Imersa nos seus pensamentos, quase não percebeu que a hora de encerrar o expediente tinha chegado.

- Bora beber, Iara!!

- Vamos afundar as mágoas!

Os colegas da loja brincavam com ela e no mesmo clima jocoso ela retrucava.

- Que nada. Sou moça de família!

Juntou seus pertences pessoais e sua amargura de casal sem par no dia dos namorados. Se despediu de todos com um "até amanhã" jogado ao vento e foi para o estacionamento da loja onde a encontrou lhe esperando. Ela sabia que estaria ali, mas mesmo assim abriu um sorriso quando a viu. Não importava quantas vezes ela a olhasse, sempre lhe parecia linda como dá primeira vez. A fraca luz do sol do final da tarde lançava jogos de luz e sombra sobre o seu corpo reluzente. Ela estava escorada bem no meio do pátio e como era fim de expediente, isso a deixava ser o centro das atenções. Ela pensou em como era sortuda de ter a encontrada anos atrás. Durante a jornada das duas, ela nunca a havia deixado na mão. Uma vez ou outra havia um transtorno, mas nada que as duas não pudessem resolver juntas.

Foi se aproximando e sem cerimônia já se sentou no banco macio da sua Intruder – 125cc, ano 2006, modelo 2007. Pelo menos sua moto de confiança não a deixaria sozinha nessa volta para casa. A moto foi um luxo necessário que Iara se deu assim que recebeu o primeiro salário. Precisava de um meio de transporte barato e eficiente já que morava em uma área rural da cidade. Mesmo para pegar um ônibus ela teria que andar um bom pedaço de chão e ainda com risco de se atrasar. E é claro, ela achava muito chique ter uma moto, dava um ar de independência para a pessoa. Assim se convenceu e comprou-a parcelado de um conhecido da cidade, estava em muito bom estado e as únicas mudanças que precisou fazer foi repintá-la de preto e refazer o banco que estava desgastado pelo uso.

Assim chegou na sua casa bem no finalzinho da tarde, guardou a moto e jogou seus pertences na varanda. Aproveitando a claridade rubra do pôr-do-sol, Iara se apresou para regar suas plantas. A horta estava meio vazia, agora que morava sozinha não dava conta de consumir todas aquelas verduras e legumes. E mesmo levando para o serviço para distribuir entre os colegas, ainda se perdia muita coisa. Por isso ela resolveu reduzir ao essencial. Também cuidou de suas flores, a roseira estava especialmente bonita, mesmo sem as flores. Olhando para ela, se deixou perder nas lembranças da sua infância, quando sua vó brigava com todos que tentavam cortar suas flores para usar de decoração.

Seu exercício mental a fez ficar vários minutos olhando o nada e, com isso, não percebeu a noite chegando. Tateou a parede externa da casa para achar o interruptor da luz.

- Droga!

Havia esquecido que a lâmpada da varanda estava queimada, por sorte era noite de lua cheia, então havia uma claridade leitosa típica dessas noites. Forçou sua visão para não tropeçar em nada enquanto guardava os objetos da jardinagem e recuperava a bolsa jogada as pressas no chão. Achou suas chaves e se encaminhou para a porta da sala. Parou por um momento quando viu o tapete da entrada fora do lugar. Achou estranho, mas logo se lembrou.

"Dei restos de comida para um cachorro de rua no fim de semana, talvez ele tenha voltado para ganhar mais". Espantou suas preocupações e abriu a porta da sala. 

Encontro InesperadoOnde histórias criam vida. Descubra agora