Capítulo Único

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"Quem olha para fora, sonha. Quem olha para dentro, acorda."

— Carl Jung

"Mulher da roça eu o sou.
[...] sou semente, sou pedra.
Pela minha voz cantam todos os pássaros do mundo."

— Cora Coralina


1

Teve um tempo que Maria Cícera, a Cicinha, gastava horas matutando assuntos, o caderno esquecido no colo, o olhar andarilho lá distante, fugindo pela janela. Se as perdia mesmo não se sabe, embora essa sua cisma nunca tenha sido vista com quaisquer bons olhos. Foi a dona Laurides, professora sua do primeiro grau, inveterada nas letras de Drummond, quem procurou a sua mãe uma vez.

— Cuida, dona Elvira. Cuida, que a tua filha anda só jururu...

Isso foi em Poconé, Mato Grosso, no bocejo lá dos anos setenta.

Nesse tempo, estudar já era coisa para muitos, embora só uns poucos de fato o quisessem. É que o trabalho impelia o jovem a uma escolha muita vez natural à gente pobre daquela época: o dinheiro, o matrimônio e a independência dos pais. Trinca de supostas ilusões, mas que afinal valiam como roteiro de vida, assinado e lavrado pelo povo e pelo tempo. A escola mesmo ia ficando pela mochila. Que traria ela para a vida de um homem, de uma mulher, dos filhos — se trouxesse? Aí que está. Não se tinha gente estudada no mato. E sob essa perspectiva muito aluno debandava, outros mais sequer ingressavam nessa roubada de estudo...

A dona Maria Elvira tinha essas ciências bem frescas na ideia. Era mãe de oito bocas — a nona no ventre —, viúva de um marido e quase cinco anos já no segundo casamento, graças a Deus. Mulher criada e sofrida demais para acreditar em certas magias. Só botou a filha mais velha ainda pequetita na escola por insistência de um tio seu, homem estudado, doutor, morava no Rio. Tinha-lhe a consideração de um pai. Assim foi que a Cicinha virou a primeira da família com algum estudo e a única a perseverar nele até então. Meteu na mãe um orgulho danado com as notas boas, com a professora que vinha cá no portão de casa dizer adjetivos da filha, só que a dona Elvira era mulher do seu tempo. Cicinha ia crescendo, ficando moça e a mãe pensava muito. O padrasto mesmo, homem sistemático, cobrava zelo.

— Cuida, mulher, que é filha tua. Se fosse minha — ele começava dizendo.

E tinha razão. Que marido não tinha? Um dia, estando na cozinha a remoer umas ideias, Elvira catou a filha pelo braço e começou falando de um tal Juarez, um da feira, conhecido de todos, sempre benquisto, vendia uma ruma de hortaliça. A Cicinha baixou a cabeça. Depois fez que sim, que lembrava dele. Achava engraçado o jeito dele falar...

Esse Juarez era um boliviano já passado da casa dos trinta, baixo no talhe, robusto no tronco, de mãos grandes e fortes. Tinha vindo com a mãe ainda guri para o Brasil. Homem simples, crente, trabalhador de gosto, que nem dizia o padrasto Arlindo. Homem para se construir uma família.

Numa noite daquelas, noite quente que antecipa as chuvaradas, o próprio bateu palma no portão, chegou, aceitou um cafezinho da hora. Com a conversa boa, ficou para a janta. Foi que nem uma festa. Embora aquela fosse uma gente pobre, sabia como receber visita. Só a Cicinha, bobinha que era, que não quis sair pra ver o boliviano. Tinha vergonha. Lá fora, ouvia as risadas dele, do padrasto Arlindo e dos seus irmãos, mas não quis sair. Ficou entocada na cozinha. Bem depois o Juarez pegou embora, mas prometendo que voltava, que ainda tinha assuntos. Fez mossa. O padrasto Arlindo ficou dizendo que era homem bom, para construir família.

Sorriso Triste na Careta da ManhãOnde histórias criam vida. Descubra agora