Capítulo único

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Essa não é uma pousada como qualquer outra. E essa pode parecer uma forma clichê de começar essa história, se você pensar no que te conto como uma. Não é, entretanto.

Pense nisso como um segredo. Algo que te falo porque não cabe mais guardado, porque precisa sair por algum lugar. Cresceu, se tornou grande demais. Precisa ocupar outros espaços no mundo senão esse.

Portanto, não é por clichês que digo que essa pousada não é como qualquer outra. É pela necessidade de fixar esse fato antes que comecemos essa jornada pela mente de Laura. Antes de começar a desenterrar memórias, revisitar quartos escuros, trazer luz para momentos sombrios.

Porque Laura não sabia onde estava se metendo. Ela era só uma jovem adulta sem dinheiro, mas com muita vontade de mochilar. Queria conhecer o mundo e estava disposta a trabalhar em troca da possibilidade de explorar cada canto existente. E assim o fazia: limpava salões, trocava roupas de cama, lavava carros, cuidava de crianças. Sempre pelo tempo necessário para se manter viva, alimentada e curiosa. Até se ver satisfeita e conseguir uma carona até a próxima cidade, onde começava tudo de novo.

Ela só tinha vinte e três e já conhecia mais lugares do que conseguia contar. De cidades costeiras até o maior cantão de interior, ela tinha uma história sobre cada um deles.

Uma história tipo essa, que começa no banco do carona de um chevette tubarão azul. A carona da vez era uma senhorinha chamada Joana que dizia ter 80 anos, mas parecia ter congelado nos 60. Dirigia com as duas mãos firmes contra o volante, como se ele fosse fugir a qualquer momento. Laura a achou adorável, e tinha lembranças fortes da avó, falecida há mais de dez anos, ao olhar para Joana. Conversaram pela maior parte do caminho, que se dava por uma estrada silenciosa e vazia. Pontos de luz eram escassos e muito espaçados, e em sua maioria vinham de pequenas casas isoladas no meio do nada.

Depois de mais de quatro horas de muita conversa, Joana disse que pararia por alguns minutos em uma pousada que sempre a deixava usar o banheiro de graça. Laura aproveitou o momento para esticar as pernas pelo estacionamento do lugar. Assim que ela saiu do carro, entretanto, sentiu algo diferente em seu coração. Algo que a puxava em direção ao lugar. Como uma coceira que começa subitamente em algum lugar embaixo da pele e não sabemos bem por que.

Foi sem pensar muito que entrou pela porta da frente e perguntou se podia trabalhar em troca de uma hospedagem temporária. "Temporária quanto?", o dono disse. Mas riu muito em seguida e disse que topava. Deu para Laura uma chave simples com um chaveiro escrito "Calma" que ela achou extremamente irônico. Não era muito uma pessoa calma.

A despedida e agradecimentos à dona Joana foram mais demorados do que imaginou que seriam. Ela não parou de dar dicas até ter certeza de que Laura ficaria bem ali, sozinha, quase no meio do nada. Laura, por sua vez, prometeu à estranha, mas adorável senhora, que ficaria bem sim, obrigada.

Grande foi a surpresa dela ao notar que Calma era o nome do quarto onde ela ficaria. E que não somente esse, mas todos os outros tinham nomes de emoções e sentimentos. Melancolia, Alegria, Paixão, Desequilíbrio, Conforto, Segurança, Ego, Calma, Rejeição e Rancor. Achou bizarro, talvez meio brega. No mínimo um pouco perturbador.

Ironicamente, o quarto passava mesmo uma sensação de calma. O que fez com que ela se perguntasse como seria, por exemplo, dormir no quarto Rejeição. Aqui as paredes eram de um azul claro, duas camas de solteiro simples, mas com tudo muito macio e limpo. As peças do quarto eram todas em madeira rústica e antiga e deixavam tudo com um ar de interior. Tinha cara de casa, e Laura, estranhamente, gostou disso.

Talvez por isso, os primeiros dias foram ótimos, embora muito cansativos. Marcos e Helena, donos da pousada, parecem aproveitar a chegada dela para limpar locais esquecidos do lugar. Laura não questionou. Eles a estavam alimentando corretamente, o quarto era ótimo e o lugar continuava a passar a estranha e reconfortante sensação de paz e conforto. Parecia suficiente por hora.

Calma - #CollabOliveira23Onde histórias criam vida. Descubra agora