prólogo

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zero. as cartas

Bernardo não era a pessoa mais feliz naquela festa. Por onde o homem passava, enxergava pessoas rindo e sorridentes, as quais lhe desejavam "felicidades" e o enchiam de elogios pomposos. Antes, ele não se importaria de ser o centro das atenções, ver todas aquelas pessoas na sua casa era algo que sempre — de certa forma — almejou. Mas, agora, ao ver que isso se tornou realidade, percebeu o quanto era como o inferno na terra.

Poderia jurar de pés juntos, nunca havia visto a maioria das pessoas que estavam na sua casa, mesmo estando um ano na política, não reconhecia um único rosto amigo. Talvez, as inúmeras madames acompanhadas de seus maridos com bolsos cheios fossem conhecidas de sua esposa, até mesmo amigas. O "talvez" deixou de ser uma possibilidade, mas uma certa, diante os inúmeros sorrisos mínimos que todas elas lhe davam, sempre acompanhados de um "risinho" que Bernardo não compreendia bem a razão por trás. Porém, o deputado sabia fingir muito bem, poupando-se a somente acenar de volta como quem agradecesse.

Distanciou seu olhar das pessoas que preenchiam cada centímetro de sua mansão, preferindo levar sua atenção para os detalhes dos cômodos por onde passava, com tranquilidade. Teriam feito quase mais de quatro meses que aquelas paredes amarelas cobertas de quadros estavam empoeiradas — ao ponto do amarelo ter virado marrom. No entanto, quando sua mulher decidira fazer aquela comemoração toda, exigiu que contratassem uma equipe para arrumar e reformular todo o interior; o que incluía limpar de verdade cada canto empoeirado ao ponto que pudessem ver seus próprios reflexos em paredes de tons amarelos e, um pouco, melancólicos. Toda vez que o homem apontava a melancolia naquelas paredes, sua esposa o culpava, já que teria sido ele quem optara por aquela cor de tinta. Provavelmente, a culpa realmente era dele, sua melancolia ranzinza era o que espelhava aquele clima tristonho por cada parte da casa.

Isso não contribuía para o homem reconhecesse a sua própria casa, como de fato, sua. Os lustres brilhavam até mesmo à luz do dia, os cristais reluziam os raios solares vindos do lado de fora, impossibilitando um único espaço escuro e com sombras. Bernardo temia que um dia saísse de lá, cego. Admitia, estava acostumado demais com a escuridão de seu escritório, e essa era uma das poucas vezes que passava mais de uma hora fora dele. A ocasião exigia, obviamente, era um dos anfitriões. Além que, Marília o obrigara, mas essa parte ele omitiria.

Estava se aproveitando da atenção em dobro que Marília dirigia a todos os convidados e todas suas amigas, assim ele poderia se esconder daquela festa. Aquela comemoração toda era direcionada a ela, não era como os convidados realmente estivessem preocupados pelo seu bem estar. Mesmo que dissessem que aquele evento era para ambos, ele e sua esposa, Bernardo sempre faria questão de enfatizar que aquilo era para ela e ponto. Isso não significava que ele não estivesse feliz pela causa de tudo aquilo, só que não estava tão emocionado quanto sua cônjuge.

Seus olhos se prenderam no quadro pendurado na parede onde ele descansava suas costas. Logo, quando reconheceu as pinceladas violentas e as cores fortes, os globos oculares de Bernardo faltaram saltar para fora, do mesmo modo que suas pernas quase derrubaram seu corpo para frente. Ele temeu que mais alguém tivesse notado sua reação, procurou por qualquer olhar que estivesse preso em si, qualquer curioso e intrometido. Ninguém, graças a Deus!

Sentiu-se mais aliviado do que deveria.

— Bernardo. — A voz de Marília quase o fez pular de onde estava, novamente. Para sua sorte, conseguiu se conter o suficiente para evitar tal reação, somente arqueou as sobrancelhas, mentindo a proporção de sua surpresa.

Sua esposa usava o vestido branco do qual se recordava de ter pago uma nota. Ainda se lembrava nitidamente da sua reação quando passaram em frente à vitrine onde o tal vestido se encontrava. Ao menos, Marília estava radiante enquanto cruzava os cômodos e os corredores, com um imenso sorriso, marcando sua presença, o vestido dançava em seu corpo. O vestido vestia ela. Apesar disso, de longe, ele podia ver um pouco de sua barriga por baixo do tecido branco e luminoso.

GRÃOS DE CAFÉ E TINTEIRO, originalOnde histórias criam vida. Descubra agora