Tempo de Pipa

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"Vamos onde ventar."

  Tempo de Pipa, Cícero.


O céu ainda estava escuro quando vovô veio me contar. Eu estava meio dormindo, meio acordado, gosto de ontem na boca. É meu estado natural todas as manhãs desde que nos afogamos nas dívidas.

— Você só pode tá doido! E se eles forem perigosos? Assassinos? Não gostarem de bolo de cenoura? — tomei um gole longo da xícara, embora o café do vovô tenha gosto de terra. É bom ocupar a língua quando se quer muito dizer algo que não deve.

Vovô riu, mas no fundo sabia que eu estava falando sério. Como todo morador de Pipa Voada, ele também sabe que não se pode confiar em forasteiros. Muito menos em quem não come bolo de cenoura.

— Eles são gente direita. Rosinha falou que nunca foram presos e nem nada parecido. Ela viu nesse tal de computador. Sabia que agora dá pra bisbilhotar a vida de todo m...

— Encher a casa não vai preencher o vazio da gente. O pai não vai voltar a viver.

Vovô ficou sério. Ele é do tipo que sorri até para goiabeira que tem no quintal do Seu Juca, então a versão séria dele não é só estranha, é assustadora.

— Eles chegam nessa sexta. Seja educado, Lírio.

Engoli o resto do café junto com a resposta atravessada que quase escapuliu. Enfrentar o vovô é sinal de perigo. Ele nunca me bateu, mas sabe o que me dói mais que um soco.

Enquanto eu rezava para sexta não chegar nunca, a cidade toda contava os dias para vivê-la. Bandeirinhas coloridas, fitas de arco-íris e mais um bocado de decorações que dispensavam cores neutras aos poucos tomaram conta das ruas. Era surreal. A primeira Parada de Pipa Voada. Parada de gente que até meses atrás se escondia em sussurros e mãos dadas por debaixo da mesa, até que alguém resolveu levantar a voz.

Rosinha e a esposa, gente finíssima, mudaram tanto por aqui. Claro que não é um mar de rosas. O povo é cabeça dura, ainda cochicha coisa feia sobre elas. Mas esse mundaréu agora, seguindo feliz pela rua, de roupas brilhando, cartaz e tal, abraçando quem se ama e se abraçando também, seria só miragem se não fosse pela coragem delas.

Jurei para mim que não apareceria na Parada. Nada contra. Gosto de gente até. Mas vovô não entenderia. Morreria de vergonha por ver um galalau feito eu no meio de tanta... Gazela — como diz dona Clotilde da Esquina. Além do mais, preciso estudar. Vestibular de Medicina não é mole, ainda mais para quem já reprovou quatro vezes.

— Ô, Lírio: tire essa carranca do caminho, que quero passar com meu amor! — cantarola Crista, braços abertos, rodopiando que nem doida no meio da rua.

— Ele está certo, maninha. Nunca vi guarda-costas sorridente. Tem que fazer mesmo cara de mau. — Fabrício ajeita a franja enorme.

Mas meu mau humor não tem a ver com o serviço, e sim com os novos hóspedes. Nunca protegi ninguém que não fosse eu mesmo, mas não é difícil intimidar quando se é maior que um prédio. Se bem que tanto faz a altura. Quando se é um cara preto, alguns trocam de calçada sem tirar nenhuma fita métrica do bolso.

Crista e Fabrício chegaram aqui em casa hoje cedo e até agora não pararam. Estão no sangue os traços hispânicos e a pulga na cueca. Ou na calcinha. Não sei bem o que eles usam. Gostam de inventar moda.

Vieram especialmente para a Parada — cujo nome é uma sigla que não entendo, mas eles sabem de cor. Claro que vovô não sabe disso. É capaz de ter um troço. Seu Gê é um cara à moda antiga.

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