Capítulo 2

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Acima da xícara de café, a fumaça se transforma em nada. O aroma intensifica minha fome, me fazendo atacar os bolinhos à frente. Não consigo me lembrar da última refeição decente que tomei. Lawrence está sentado ao lado da janela, embassando-a com sua respiração, encarando fixamente o lado de fora. Ele aguarda até que eu fique satisfeita, pacientemente. 

- Não lembro de ter perguntado seu nome - ele começa, seus olhos pairando sobre mim. 

- Imaginei que já soubesse. Sou a N° 150. 

- Sim - ele sorri - mas você não se lembra do seu nome verdadeiro? 

Balanço a cabeça negativamente. Lawrence se levanta e caminha até uma prateleira com vários livros, pega um e o traz de volta à mesa. Ele o folheia, contando as páginas em voz baixa. 

- Aqui - ele diz, com o dedo apontando algo no papel - N° 150, olhe. Esse é seu nome.

Me aproximo para poder enxergar melhor. 

Eleanor McGregor.  Idade: 10 anos.  Capturada em: 17/03/2101. 

Estremeço. Imagens invadem minha mente, o desespero acelera meu coração. Me lembro com dor daquele dia, o último em que vi minha família. Uma lágrima escorre, seguida de mais uma, e outra. Lawrence coloca a mão no meu ombro, numa tentativa de me consolar. 

- Acho que posso te chamar de Ellie, o que acha? - ele diz, assim que me recupero. 

Digo que sim, um som quase inaudível. Ellie, repito mentalmente. Meu nome, que deveria carregar uma bela história, representa apenas o terror psicológico imposto pela Casa. 

- Bem, Ellie - Lawrence pronuncia meu nome enfáticamente - como eu disse a você ontem, há muita coisa que você precisa saber, então irei explicando aos poucos. Em prim...

- O que você quis dizer quando disse que estamos na mesma situação? - interrompo-o. 

- De forma simples, somos fugitivos da Shadow's Corporation.

- Como assim? - digo, estarrecida.

- Acredito que já tenha percebido algumas "melhorias" - ele faz o sinal de aspas com as mãos - no seu corpo. Aumento de força, audição e visão aprimorados, coisas assim. Basicamente, eu realizei essas mudanças, alterando o soro do seu último teste. 

- Mas por que? - pergunto, intrigada. 

- Essa é a parte longa da história. Para responder sua pergunta, precisamos voltar aos planos iniciais da Shadow's - Lawrence se levanta novamente e traz mais dois livros à mesa. 

- Abra - ele entrega um dos livros a mim, e começo a folhear um deles.  

- Não estou entendendo, o que é tudo isso? - encaro-o com uma expressão confusa.

- Há muito tempo - diz ele, retirando o livro de minhas mãos - o mundo enfrentou uma realidade diferente da que todos estavam acostumados. Doenças que eram raras, se tornaram surtos epidêmicos. Uma delas em especial, a DCJ, se espalhou numa velocidade impressionante, atingindo em pouco tempo toda a América. 

- Como isso aconteceu? O que a doença causava?

- O motivo é desconhecido. Teorias conspiratórias indicam que a doença foi usada como uma espécie de arma biológica durante a 3° Guerra. O que sabemos é que boa parte da população americana foi dizimada.

- Seria uma espécie de vírus mortal?

- Na verdade, é um pouco diferente. A doença agia diretamente no sistema neurológico do indivíduo, causada por uma partícula infectante chamada PRÍON, que é bem menor que um vírus. A partir do momento do contágio, rapidamente se inicia o processo degenerativo, levando a pessoa à morte num prazo máximo de um ano. O pior é o que acontece antes disso.

- E o que acontece é... - faço um sinal para que ele prossiga.

- Desordem cerebral, perda da capacidade de comunicação, falta de coordenação nos movimentos, e também a perda da memória. 

Perda de memória. Seria esse o motivo... não. Não poderia ser, já que não tive nenhum outro sintoma. 

- Com a progressão da doença, as pessoas começaram a apresentar ataques epilépticos e paralisia facial. Foi assustador. Pessoas amadas se tornavam irreconhecíveis. 

- E o que a Shadow's tem a ver com tudo isso?

- Após perderem o controle da epidemia, a Ordem de Segurança Nacional fundou uma instituicão que deveria descobrir a causa da doença, estudar suas formas de transmissão, e principalmente, desenvolver a cura. Para estudá-la, eram necessários pessoas infectadas, obviamente. E para a realização dos testes, pessoas saudáveis. O medo instalado na população impediu que as pessoas se voluntariassem a participar do projeto. Com isso, foi necessário tornar a participação obrigatória. A resistência era tão forte, que pessoas eram levadas à força. 

- Sei bem disso... - ser uma das "vítimas" não é o tipo de privilégio que eu esperava ter.

- Os melhores especialistas foram convocados a participar do projeto inicial, foi quando me juntei à Shadow's. Começamos a procurar  formas efetivas para alterar a evolução fatal da doença, até concluirmos que as drogas antivirais existentes não seriam fortes o suficiente. Logo, a doença foi caracterizada como incurável.

- Mas então por que continuaram com os testes?

- Bem, a possibilidade de cura já havia sido descartada. Então, decidiram dar continuidade a outros projetos. A Constituição proibia o uso de cobaias humanas, então encararam a oportunidade como uma "brecha" para fazer o que bem entendiam. 

- Isso é errado. Por que ninguém fez nada para impedir?

- A Ordem desconhece os objetivos da Shadow's, - Lawrence se levanta e começa a caminhar de um lado para o outro -  por enquanto. 

- O que pretende fazer?

- Descobrirá logo, afinal, preciso da sua ajuda - ele diz, parado em frente à mim. 

O Outro Lado da SombraOnde histórias criam vida. Descubra agora