oneshot

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É tudo silêncio além do retinir dos frascos de vidro.

O cabelo dela está preso em uma trança cor de rosa que desliza pelas costas enquanto ela dá passos curtos para os lados ao redor da mesa, em meio a tubos de ensaio e líquidos reluzentes.

Coloco as pernas para dentro da janela entreaberta, ainda invisível, sentindo o cheiro doce e nostálgico que toma conta do quarto rosa por todos os lados. Deslizo lentamente até ficar sentada no carpete e abraço os joelhos. Pequenos flocos de neve caem dos meus cabelos e do cachecol e derretem no chão, mas ela não consegue ver.

Já é tarde da noite e me pergunto se ela ultimamente está tão sobrecarregada que tem que levar parte do laboratório para onde ela dorme. Bonnibel veste um jaleco branco por cima do que me parece um pijama e os cabelos estão bagunçados na frente, caindo como pequenas ondas sobre os olhos. Ela parece tão cansada e concentrada ao mesmo tempo e eu imagino que a senhorita perfeição esteja trabalhando em algo realmente importante dessa vez. Não faço barulho porque não quero perturbá-la, mas observo cada gesto e cada expressão como se ela me atraísse por magnetismo. Isso não é novidade pra mim.

Nos shows da minha banda, repleta de milhares de fãs, eu sempre pedia pra que ela fosse, que tentasse se desfazer um pouco dos deveres de princesa e estar lá comigo por algumas horas. Eu poderia ter uma legião de fãs cantando junto comigo, mas se aquela garota não estivesse na plateia, nenhuma apresentação seria tão empolgante. Eu não teria vontade de dar o melhor de mim. E claro, quando ela aparecia... bem, eu só tinha olhos pra ela. Centenas de pessoas se dissipavam numa névoa escura e eu só conseguia enxergar a Bonnie. Eu só cantava para a Bonnie. Era a minha única razão.

Depois do Ash destruir a minha vida, eu parei de sentir qualquer coisa. Eu me fechei e me neguei a me aproximar de outras pessoas, até ela aparecer e mudar isso e eu aprender que, seja tristeza ou felicidade, tudo é temporário. Ainda mais quando se tem todo o tempo do mundo.

E então tudo ficou no passado. O que tivemos, o que sentimos e o tempo em que estávamos juntas. Eu tentei esquecer, e disse a mim mesma para deixar isso pra trás. Pra seguir em frente. Guardamos aquilo a sete chaves e nunca mais tocamos no assunto. Mas de vez em quando eu tenho umas malditas recaídas, que é quando eu me lembro que, apesar de tudo, eu ainda era mais feliz ao lado dela.

Na verdade, acho que ela diria que eu estou louca. Que eu sou uma stalker psicopata e chamaria os guardas em um segundo. Acho que esse lado desconfiado da Bonnie nunca mudou. Nem essa teimosia de ferro de colocar sempre o reino em primeiro lugar, o reino em segundo lugar e o reino em terceiro lugar.

Eu suspiro, frustrada com minhas lembranças, mas logo me arrependo porque ela ouve o som, dá um pulo e olha para todas as direções, assustada. Acho que saiu alto demais. O laço na trança dela esbarra em dois tubos de ensaio, que caem no chão com um estrondo lançando uma nuvem azul escura no ar, pontilhada de pontos prateados como o céu à noite, e quanto mais ela tenta limpar a sujeira, mais derruba outros frascos que se espatifam e se espalham. Eu sufoco uma risada. Ela grita de raiva, chuta os cacos de vidro e xinga todos os nomes possíveis e imagináveis. Eu começo a me contorcer de tanto rir e nem me dou conta de esconder, começando a ficar visível de novo sem que perceba. Estou mesmo vendo Bonnie se descontrolando? Meu Glob, eu devia estar filmando isso.

– Calma Bubs, sou eu – digo, ainda rindo, levantando as mãos como quem diz "eu me rendo". Minha barriga dói e eu limpo uma lágrima que escorreu. Cadê meu celular numa hora dessas? O rosto dela se alivia por uma fração de segundo e depois se transfigura em um mais assustado e irritado ainda, porque, bem, eu estou apenas no canto do quarto dela sem motivo algum.

– O que você está fazendo aqui? – Ela olha para os lados e se aproxima, como se pudesse encontrar mais alguém ali além de mim. – Marcy, há quanto tempo você está aqui?

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