Parte 4

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Ada acordou sobressaltada.

Tinha um sentimento terrível de que algo muito mau se tinha passado, mas não entendia a razão do seu aperto. Provavelmente tinha tido um pesadelo e não se lembrava. Aconchegou-se novamente na almofada e fechou os olhos.

"Não," pensou.

Havia algo de errado, ela sentia-o. Poderiam ser as preocupações de uma mente ansiosa, mas precisava de descansar esses medos antes de voltar a adormecer.

Olhou em volta para o quarto iluminado pelos candeeiros de rua. Não havia vestígios de sombras estranhas a espreitarem.

Ada lutou contra a vontade que tinha em enrolar-se que nem uma bola e esconder-se na segurança dos cobertores. Precisava de verificar se os irmãos estavam bem.

O instinto maternal ganhou.

Os seus pés descalços estavam frios contra o soalho de madeira. O aquecimento estava desligado para poupar energia e uma névoa de fumo formava-se com cada expiração nervosa.

Ada ouviu um estrondo e encostou-se contra a parede.

Respirou de alívio ao perceber que era apenas a janela ao fundo do corredor que estava aberta. Começou a apressar-se para ir fechá-la e poder voltar para a cama. Mas estancou em frente do quarto dos irmãos.

O medo que sentira desde que acordara intensificou-se.

A porta estava entreaberta. Ada fechava sempre a porta depois de verificar que estavam a dormir.

Com cuidado, para não fazer barulho, aproximou-se de braço esticado e abriu lentamente o resto da porta.

Algo escuro e voluptuoso debruçava-se sobre a cama de Jonah.

A garganta de Ada apertou-se. Ela nunca vira nada como... como aquilo. Não parecia humano.

Será que ainda estava a sonhar?

Não podia correr o risco.

Ada lançou-se na direção da criatura.

Aquela... coisa... levantou-se antes que Ada chegasse até ela. Agarrou-a pelo pescoço e os pés de Ada abandonaram o chão. De repente, o seu corpo foi impulsionado contra a parede do outro lado do quarto. Ada sentiu o ar a ser expelido dos pulmões sob o impacto e deslizou até ao chão.

Depois de bater de barriga para baixo contra o soalho duro, tentou levantar-se, mas os braços fraquejaram. Ergueu-se apenas o suficiente para poder olhar em frente.

Ada petrificou.

Havia uma poça de sangue espalhada pelo chão. A pequena mão de Adam jazia sob o sangue derramado.

Ada soltou um grito primitivo até a garganta arder. E mesmo assim aquele grito não era capaz de expelir toda a dor que sentia naquele momento.

O som de passos ecoou pelo soalho.

Ada viu a imagem do pai correr até à porta. Atumultuado pelo barulho. Por momentos, sentiu uma espécie de alívio juvenil, de uma criança que espera ser salva pelo progenitor. O pai travou junto da porta em choque ao vê-la deitada no chão.

De seguida olhou para a aquela espécie de monstro que os observava maliciosamente. Aquele ser demónico era comprido e semi-humano, as fileiras de dentes afiados brilhavam na luz fraca e os olhos de serpente acompanhavam os seus movimentos. Os olhos do pai quase saltaram. O homem começou a agitar o dedo repetidamente perante a visão da criatura. Tentava dizer qualquer coisa, mas só saiam grunhidos.

A serpente humanoide sibilou ao seu pai que se sobressaltou. Olhou para o corpo de Jonah caído à frente deles e de seguida para a Ada. Abanou a cabeça repetidamente agarrando-se à porta, até que largou em corrida para longe do quarto.

– Não! – gritou Ada atrás dele. – Pai.

Sentiu como se tivesse levado uma nova bofetada. Só que esta era uma dor muito pior. Já se tornara dormente às agressões do pai, mas este era um nível de traição que ainda não conseguia compreender.

Queria chamar-lhe de cobarde. Queria chamar-lhe de fraco. Queria fazer algo que o fizesse mudar de ideias. Ou pelo menos magoá-lo. Em vez disso, olhou para o corpo de Adam no chão. O seu corpo sem vida e despejado no chão que nem uma saca de batatas.

Um odor extremamente desagradável fez com que Ada largasse os olhos do irmão mais novo, quando a criatura se mexeu para regressar para junto de Jonah.

Ada tentou levantar-se e gemeu contra a dor que lhe atingiu o corpo. Reunindo todas as forças que conseguia, correu na direção do demónio e saltou contra ela, atirando-a ao chão com ela em cima. Ainda no chão, Ada empurrou os pés várias vezes contra o seu corpo duro, tentando afastar-se. A criatura não parecia ter pernas ou pés, era apenas alongado. O seu agressor caiu sobre Ada, e pressionou as mãos escamosas sobre o seu peito.

Ada gritou novamente.

O peso dos seus dedos, unidos por membranas interdigitais, pressionava-a, mas ela aproveitou os braços livres e tentou golpeá-lo sem sentido. A dor atingiu-a nos nós dos dedos de tal forma que sentiu os braços fraquejarem.

A criatura lançou-a a rastejar pelo chão até encontrar uma superfície que a travasse. Desta vez fora a nuca que embatera contra o armário.

Ada levou as mãos à cabeça, tentando focar a visão que se tornara esbranquiçada e cheia de pontos brilhantes.

Estendeu a mão até Jonah.

– Por favor, não. – Tentou implorar desta vez. – Ele é só uma criança... por favor.

Um som estridente tiniu pelo ar, e acrescentou um zumbido à visão desfocada de Ada. Observou o vulto da criatura a erguer-se para logo de seguida correr na direção da janela. Antes que atingisse a vidraça outro tiro sonoro perturbou o silêncio da noite e a criatura mergulhou saltando pela janela.

Um vulto feminino e loiro empunhava uma arma na direção da janela, ao passo que um rapaz de pele azeitona corria na direção da rapariga caída. Ada pensou que o rosto do rapaz era lhe familiar, mas não se recordava de onde.

Tinha sido salva pelos seus anjos da guarda.

– Estás bem? – Perguntou ajoelhando-se ao seu lado.

– Eu... eu... o que era aquilo? – Apontou para a janela em choque. – Vocês mataram-na?

– Ela fugiu – respondeu o anjo da guarda.

– Gabriel, temos de ir –apressou a mulher. – A polícia vem aí. 

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