Capítulo 1

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Noah

     Sempre soube que morreria no asfalto. Sobre duas rodas e em alta velocidade. Só que, sério mesmo? Será agora?
         – Mas que po...
      Aperto o freio da minha motocicleta com tanta força que sinto quando o pneu traseiro sobe. Quase beijo o chão, mas anos de experiência me dão o equilíbrio certo e me estabilizo sobre as rodas da minha motocicleta sem problemas ou qualquer acidente.
      Dizer que a manobra foi perigosa, ainda mais para uma avenida movimentada como esta, é um eufemismo. Poderia ter caído e, pior, desencadeado um desastre com efeito dominó daqueles.
       Relanceio um olhar rápido através do retrovisor para me certificar de que realmente está tudo bem lá trás.
      Quando as buzinas e xingamentos contra mim tornam–se nítidas, impossível de ignorar, meu humor piora. Não fui eu que iniciou essa merda. Subo a viseira do meu capacete num impulso, lançando um olhar letal para a janela de vidro fumê do carro ao meu lado e que quase havia me fechado de propósito.
         O "vá se ferrar" quase escorre por entre meus dentes, enquanto tento nivelar minha velocidade com a Porsche, ficando perto do acostamento. No entanto, o babaca ao volante acelera sem nem pensar duas vezes. Sorrio, irônico. Você quer brincar, imbecil?
     Meu punho direito vibra com a vontade de girar. Sinto a adrenalina de antecipação rugindo dentro de mim, porém acalmo minha ânsia quando me lembro de onde estou.
         Eu até poderia fazer o jogo do dono da Porsche de iniciar uma disputa ilegal entre nossas máquinas em plena hora do rush. Sei que quero isso, sinto em cada molécula do meu corpo o impulso, o anseio pelo rugido do vento em meus ouvidos, que há tanto tempo venho evitando. Mas me contenho, porque controle é tudo e, se não o tiver em minha vida, eu não terei nada. Sem mencionar os perigos óbvios, estou atrasado para a primeira reunião do dia, algo que me deixa irascível, seria suicídio na certa se topasse com algum automóvel com o cruzamento logo mais à frente. Portanto, paro perfeitamente junto aos outros veículos quando o semáforo na avenida fica vermelho. Praguejo. Esse está se saindo um início de dia de merda.
      Dia de visita. Minha viagem periódica e imprevisível, sem dia ou hora marcados. Simplesmente senti o chamado e fui, o que me tirou do meu treino matinal, colocando o tempo contra mim. Precisei voltar mais cedo que o normal, já que preciso estar presente na reunião que deveria ter começado há uma hora.
   A empresa até pode ser minha, entretanto não gosto de parecer irresponsável perante meus colaboradores. Atrasos para mim são irresponsabilidades, falta de gerenciamento de tempo. Se estou como um fio desencapado, com um humor dos diabos, é porque abomino tudo o que foge ao meu controle.
      Olho em volta impaciente e um ponto chama a minha atenção.
      Se parar para refletir sobre isso algum dia, direi que foi justamente o acaso, tudo dando errado no meu dia, que me fez estar naquele lugar e naquela hora; quando fui obrigado a parar e pude observar a chegada da barulhenta lata velha amarela do outro lado. Tudo mudou.
           Foi quando a vi.
          A mulher com uma mala preta descendo do ônibus parado à beira da estrada. Ela está com a cabeça baixa, por isso não consigo ver seu rosto.                                                                                                     
          Paro de olhá–la a tempo suficiente para verificar se o semáforo havia mudado e, quando a olho novamente, ela fica de costas, voltada para a porta do ônibus, como se esperasse alguém e, outra vez, não vejo quem é.
          A mulher usa uma calça legging preta e um blusão cinza claro. Os tênis All Star confortáveis coroam seu look. Do ângulo em que estou, não vejo nada atrativo nela, nada que justifique por que estou olhando–a agora ou por qual motivo permaneço assim. Mesmo que a mulher em questão esteja esperando outra pessoa na porta do ônibus e não sozinha como parece, para uma cidadezinha no interior do Brasil como Santa Bela, não há nada demais nisso, acontece quase sempre.
        Nossa cidade é conhecida por ser um refúgio, um local seguro para onde você se muda para poder criar seus filhos na rua sem medo, já que conhece praticamente todo mundo.  Por isso, sei que a desconhecida não é daqui. E não entendo meu fascínio com relação a sua chegada, já que logo toda Santa Bela saberá sobre ela. É só uma questão de tempo até que eu também saiba.
Justo quando estou quase virando o rosto, meu coração congela.
A mulher se move. Apenas dois segundos é tempo suficiente para que eu tenha, brevemente, um vislumbre de seu rosto de perfil. É um choque detectar o que, aparentemente, meu próprio inconsciente já havia feito.
É ela. Eliza.
Meu corpo reage involuntariamente, sem que possa impedir. Sinto como se todos os anos de preparação para quando esse dia chegasse estivessem sendo desfeitos num piscar de olhos diante de mim.
Vários alertas soam no meu cérebro dizendo que o sinal à minha frente já está alaranjado, todavia, mesmo que alguns veículos ao meu lado estejam a ponto de se mover, meus músculos não reagem. Não consigo tirar os olhos dela.
Eliza mexe nos longos cabelos, torce os fios num coque e, logo em seguida, desfaz o penteado. Penso que deveria ter reconhecido aqueles cabelos no instante em que os vi. Apesar dela usá-los no passado de um modo diferente, ainda são os mesmos: pretos, espessos e ondulados. E continuam soltos... É como eu gosto mais... Quero dizer, mas que inferno! Não! Nem sei por que continuo observando, afinal, nada, absolutamente nada, a respeito dela me interessa. Não mais.          
O problema é que meu autocontrole, a única coisa que mais prezo em mim, não está funcionando agora. Levei apenas dois segundos para reconhecê–la e outros dois para ficar malditamente sem reação. Cinco anos não é um tempo longo o suficiente para me preparar para vê-la? Bem, ao que parece, não.
Sinto quando minha Harley Davidson desliga inesperadamente. Olho para o alto e sorrio, porque sim, toda aquela merda é hilária.
Eu, Noah Aguiar, tendo problemas com uma moto?! 
Pela primeira vez, fiz minha motocicleta morrer na pista. Então, quer dizer que toda a minha experiência está indo para o ralo só porque estou diante da minha ex? Porra, isso é o que chamo de influência negativa. Estou prostrado na avenida, parecendo um iniciante emocionado, enquanto os outros veículos ganham vida diante do sinal verde e passam cantando pneu ao meu lado.
             Novamente, esse não é um dos meus melhores dias.
Eu me pergunto qual seria a probabilidade de encontrar com a minha ex, depois de cinco anos, no instante em que voltasse. E a resposta é quase nula, no entanto lá está ela, a pouco mais de três metros, provando que quando o ser lá de cima quer ser irônico, Ele capricha. Nossa, valeu.
Como ela não me vê, continuo observando.
Eliza ainda tem a mesma aparência da última vez que nos vimos. Embora saiba que não devo sentir nada, devido a tudo o que ela causou na minha vida, eu compreendo agora o motivo da minha atenção na cena. Foi exatamente por ser ela que foi praticamente impossível passar e não olhá–la.
Eliza é aquela parte do meu passado que veementemente se recusa a ficar lá. Mas sou eu quem me forço a lembrar dele diariamente, serve como um lembrete constante para que siga com meus planos, e agora servirá para caso não sinta a aversão que devo sentir ao vê-la.
Ela é o meu maior arrependimento.                    
– Apenas pare de olhar, caramba! – murmuro comigo mesmo, tentando recuperar um pouco da minha dignidade.                       
Tenho certeza de que se imaginasse que nessa manhã eu a veria, teria adiado o maldito encontro o máximo possível, apesar de já saber que, de um jeito ou de outro, ficaríamos cara a cara.                            
Ligo minha motocicleta, mas não saio apressado como se estivesse fugindo. Eu me recomponho da minha surpresa, porque foi isso que me fez parar. Eliza não tem nenhuma influência sobre mim há bastante tempo. Arrisco uma última olhada em sua direção como desafio e sou encarado de volta.
A mãe dela me vê e acena freneticamente em minha direção. Deste modo, Cecília não me dá chance para ao menos fingir que não é comigo. Ela é a pessoa que Eliza esperava. De alguma forma, o ar que não sabia está prendendo volta a circular livremente nos meus pulmões.
Minha intenção é apenas acenar de volta para a velha senhora e permanecer o mais longe possível das duas. Porém, percebo o quão óbvio isso pode parecer para Eliza e, ao olhar à minha volta, vejo que sou o único com transporte por perto para ajudá-las. Cadê os carros e motocicletas dispostos desse lugar agora?!  Parece que todos foram evaporados num passe de mágica e a avenida movimentada tornou-se uma avenida deserta.
Está na cara que estão precisando de ajuda, considerando a quantidade de malas ao redor delas. Acho incrível o fato de não haver ninguém para buscá-las, pela família a qual pertencem.
Me convenço internamente, afirmando que não posso deixar uma senhora na mão e me aproximo, apenas pela mulher mais velha acenando. Que grande cavalheiro estou me saindo no momento.
Desço de minha Sportster e vou até elas, torcendo para que a senhora Mafra veja meu brinquedinho como todo mundo na cidade vê: uma máquina mortífera, minha cavernosa.
– Noah! – A mãe da minha ex nem hesita antes de me abraçar calorosamente. Em minha cabeça, o cumprimento que eu tenho para dar a ela é: "Olá, querida ex–sogra!, mas tudo o que sai é:                                                                                      
   – Olá, senhora Mafra, como vai? –  falo manso e alto o bastante para ver a reação dela.
– Que bom que te vimos, você apareceu como um milagre!                                        – exclama a mãe da Eliza, sem perceber a filha virando em minha direção horrorizada, como se eu fosse a última pessoa que quisesse ver naquele dia. É recíproco, meu bem. – Olha, Eliza, é o seu namorado!
    – Ex! – dizemos, Eliza e eu, ao mesmo tempo.
    – Bobagens, crianças! – A senhora Mafra faz pouco caso do erro, enquanto dá leve batidinhas em minhas costas.
Por cima do ombro da senhora Mafra, vejo o desagrado de Eliza em me ver com sua mãe. Há uma ligeira tensão em seu corpo que não estava ali antes, como se ela temesse que eu ficasse perto demais dela e de sua família.
Me separo gentilmente da senhora Mafra e ela começa a falar:     
– Não estou conseguindo falar com o Leon, meu celular e o da Eliza descarregaram na viagem... – Ela prossegue com a tagarelice por muito tempo, paro de ouvi–la na parte sobre o pai de Eliza.
Eu me armo com minha postura mais arrogante e indiferente, não quero parecer um filho da mãe patético, parado e sem reação na frente da mulher que nunca deveria ter cruzado o meu caminho. Por mais que internamente esteja dessa forma, ela não precisa saber.
Eliza está roubando toda a minha atenção, todo o meu fôlego. Coloco a culpa na surpresa de ter que topar com ela depois de cinco anos e, ao contrário do que eu esperava, ela está me encarando da mesma forma, cinicamente, por trás dos óculos de armação enorme e de lentes escuras que usa.
Eu sei onde seus olhos estão, assim como sei onde os meus estão, e isso me deixa puto, porque todas as sinapses do meu cérebro, que nunca mais deveriam me deixar olhá–la dessa forma, não estão funcionando.
É perceptível que Eliza não é mais a garotinha tímida que conheci e o fato dela parecer tão indiferente só me faz querer ficar mais em sua presença. Testá–la e levá–la ao limite.
Ela morde os lábios como se estivesse se segurando para não fazer algo e esse simples movimento atrai toda minha atenção para sua boca. Caramba, como é sexy. Meu corpo reage de novo. Agora mesmo quero que tenha uma lei para que os países baixos de um cara não tentem se alegrar com voltas de ex–namoradas traidoras, pois o meu está querendo fazer exatamente isso. Mas que merda, como assim?!
A parte racional do meu cérebro com certeza está entrando em falência. Estou agradecido por ter escolhido um blazer mais longo hoje.
Embora mal suporte respirar o mesmo ar que o dela, não deixo que perceba meu desconforto. Volto a fitá-la sem reservas –  consumindo-a, para ser mais exato –  porque agora eu estou livre de qualquer amarras e deixo que minha atenção não fique somente nesse ponto rosado que é a sua boca, mas em tudo nela.
Sim, há um impasse dentro do meu peito dizendo que estou cruzando todas as linhas que estabeleci e não entende como uma parte minha ainda sente essa atração, mesmo que ínfima por ela. Essa parte está ganhando, ela diz que está tudo bem sentir isso porque ela é a Eliza: a única mulher que foi capaz de fazer meu coração bater mais forte e pará-lo ao mesmo tempo. Já a outra, só quer respostas, como se houvesse uma para trair e partir o coração de alguém.
Eu preciso me lembrar dessa última parte constantemente.Porém, mesmo a odiando (e com todas as minhas forças) eu não consigo parar de apreciá-la.
Estou dando ao meu cérebro memórias novas e nítidas do seu rosto de traços marcantes. O tipo de rosto que muitas mulheres pagam para ter e ela simplesmente nasceu. Suas sobrancelhas são levemente arqueadas, o nariz reto, maçãs do rosto salientes e a boca grande de lábios carnudos e delineados exercem um tipo de poder sobre mim. Os óculos cobrem seus olhos, mas me lembro perfeitamente da cor deles, são de uma exata tonalidade de avelã, um castanho vívido e limpo com o verde na parte externa da íris.
Eu desço a vista, tomo extrema consciência de seu corpo torneado por baixo da roupa leve, e lá se vai a minha tentativa de não desejá–la e parte da minha sanidade. 
Ao passar os olhos por sua blusa, que naquela luz está quase transparente, percebo que está sem sutiã. Os bicos dos mamilos ficam visíveis conforme ela respira, com o tecido da blusa roçando neles levemente. Puta merda, eu posso até sentir o peso deles em minhas mãos.
De repente, sinto uma vontade irracional e primitiva de afastá-la dos olhares famintos que vai receber; quero estar com um braço em volta dela e lançar um olhar como quem diz: apreciem bastante, mas ela é minha.
  Acho que deixo minha máscara cair e Eliza lê os meus pensamentos. Não sei dizer qual dos dois respira mais ruidosamente, se sou eu ou ela, que mesmo percebendo que estou olhando e imaginando, não fica nem um pouco constrangida. Pelo contrário, sabe o que está me causando e não se importa.
Segundo sinal de que não é a mesma pessoa que conheci.
Não entendo como, mesmo depois de tanto tempo, vê-la ainda mexe comigo. E isso não poderia ser de uma maneira boa. Eu desconfio de minhas reações neste momento, pois, ao mesmo tempo em que a acho atraente, a acho irritante com seu nariz empinado e isso me faz questionar minha sanidade por um dia ter gostado dela. Sempre soube que meus gostos são por mulheres "pés no chão", reais, daquelas que são quinze por cento certinhas, mas o resto é dona encrenca, e não de mimadas estereotipadas feito Eliza Mafra.
Enquanto isso, sua mãe continua com a falação, alheia a nossa tensão.
Se minha máscara havia caído, a dela, agora, está a postos. A verdadeira. Se tem um termo certo para descrever Eliza é impenetrável. Seu rosto está imóvel, sem a surpresa de que tinha visto a pouco, nem nenhum músculo se movendo, ela não absorve e nem transmite nada, parece... distante.
Basta uma olhada mais de perto para entender o que ela não quer revelar, para perceber o que seus óculos cobrem. Só há um motivo para alguém ser tão fria. Não era apenas desinteresse – bem, talvez fosse um pouco disso também e meu julgamento esteja errado – , mas ela realmente parece vazia, quebrada.
     Fico me remoendo de ciúmes e de raiva. Alguém conseguiu fazer o que quero há muito tempo: machucar Eliza Mafra tanto quanto já me machucou. Mas ela já parece destroçada.
       Por que diabos meu plano de trazê-la de volta não saiu como eu esperava?

💋 Amouuures, por hoje é só! Espero que esse primeiro capítulo tenha dado a você um gostinho do que estar por vir entre Noah e Eliza! Prevejo treta, brigas, masss... Não esquece de comentar o que estar achando, está bem? Bjoos da Anne!🤗

MECÂNICO ARROGANTEOnde histórias criam vida. Descubra agora