IN VIRUS VERITAS ou ALÉTHEIA, OSTRAS e PESSOAS

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IE no dia seguinte, a Verdade teve fome e começou a matar. Seu banquete durou quase uma semana e, quando partiu com seu apetite voraz devidamente saciado, mais de três mil pessoas estavam mortas ou morrendo. Por favor, se lhe pareceu que retratei a Verdade como uma serial killer cruel e insaciável, peço que me desculpe. Não foi nada disso. Acredite, tudo não passou de uma sequência de coincidências, ocasiões fortuitas e a consequência de ações involuntárias e inevitáveis, tanto da parte da Verdade quanto de suas vítimas. Não pense que a Verdade contemplou a biga de Helius e seus cavalos de fogo despontando no horizonte, trazendo o Sol para substituir a vigília de Selene pensou "Ah, esse é um belo dia para matar três mil pessoas", ou algo do tipo. Não foi nada nem parecido. No começo desse tal dia, tudo que a Verdade pretendia matar era a sua vontade de degustar seu prato preferido.

A Verdade adora ostras porque se parecem com ela. Eu sei, você arregalou os olhos, estranhando o fato alguém gostar tanto de si a ponto de ter como prato preferido uma comida que acha que é a sua cara. A sua reação é parecida com a dos outros deuses quando a Verdade confessa suas preferências. Ela já acostumou-se a receber olhares espantados e julgadores como o seu. Tanto que nem se dá ao trabalho de justificar seu prazer autofágico narcisístico. A Verdade é assim mesmo, ela gosta de falar, de contar o que pensa e o que sente sem reservas. Mas acha enfadonho ter que se explicar. "Desnecessário para quem entende e inútil para quem não quer entender", diz de si para si. Não pense que a Verdade é louca. Ela nem gosta de falar sozinha, mas, tendo sempre muito o que falar e cada vez menos pessoas dispostas a ouvir, acostumou-se aos solilóquios. Sendo incomparavelmente bela (não importando o que diga Afrodite) e admirada nas mínimas coisas, como seu caminhar gracioso e de passos longos e aferidos, a Verdade, por ser tão aberta e expansiva, esperava ser acolhida e admirada por deuses e homens. Em vez disso, foi preterida por todos desde que saiu da fornalha de Prometeu. Imortais e mortais afastaram-se dela aos poucos, preferindo a companhia de Pseudologo, a cópia mal feita de pernas curtas que Dolo esculpiu e o titã colocou na mesma fornalha.

A Verdade não reclama nem lamenta. Sem rancores, entende que as coisas são como são e as pessoas, imortais e mortais, procedem de acordo com sua natureza. Aceitou com naturalidade mesmo quando os convites para as reuniões no Olimpo ou para as festas dos deuses na Terra começaram a rarear. Logo, o mesmo se deu com a hospitalidade dos homens. Cavernas, mais tarde tornaram-se aldeias que, atualmente, desdobram-se nos antros de poluição do ambiente e da alma das pessoas chamados de cidades. As casas deles aumentaram em tamanho, mas deixaram a Verdade sem espaço. Foi assim que, aos poucos, a Verdade afastou-se de deuses, homens e até das ostras. Passa a maior parte do seu tempo nas florestas, entre os animais e árvores. Seres simples e tidos como selvagens acolheram a Verdade de forma irrestrita. Não entendem nada do muito que ela fala, mas a aceitam em todas as suas nuances, algo que nunca aconteceu na companhia dos chamados seres racionais. A Verdade fica tão surpresa e feliz com essa acolhida que perde a noção do tempo. Esquece até das ostras, deleitando-se por horas, dias, anos, séculos, eras e tempos sem fim nas imensidões verdes, conhecendo e sendo conhecida de plantas e animais.

Você se engana se acha que o exílio tácito fez os sentimentos da Verdade mudarem. Ela ainda gosta muito de gente. Gosta mais dos homens que dos deuses. Os imortais são sempre os mesmos, não importa quanto tempo demore para encontrar com um deles. Nunca mudam, não se admitem como imperfeitos... São enfadonhos e gostam de ser assim. E são muito egoístas e prepotentes. Por conhecerem a Verdade, acham que estão sempre com ela e nem notam o quanto se afastaram. Os seres humanos são diferentes. Assim como os deuses, eles não percebem quanto distantes da Verdade estão, mas, pelo menos, sentem que algo lhes falta. A maioria amortece esse sentimento de incompletude dedicando-se às obrigações e afazeres da vida, ou tentam preencher esse vazio com o auto engano em suas mais diferentes formas. Outros entendem a falta que a Verdade lhes faz e, mesmo que deem a ela outro nome, buscam se completar, procuram conhecer a si e aos outros, evoluir, atingir potenciais, cumprir vocações. Esse último tipo está cada vez mais raro, mas a Verdade ainda os encontra.

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