Capítulo 2

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Eliza

             Voltar para essa cidade será um novo tipo de tortura. É o que penso ao avistar o lugar onde passei boa parte da minha infância e adolescência aproximando–se pelo vidro da janela do ônibus. Minha mãe, ao meu lado na poltrona surrada do veículo – infelizmente esta é a situação atual da minha família –, começa a fungar assim que também vislumbra.  Viro o meu rosto para não encará–la. 
– A senhora quer um lenço? – ofereço o quadradinho de papel ainda sem fitar o seu rosto. Sempre carrego comigo uma caixa de kleenex quando estou com ela.
A julguei errado quando pensei que, por causa dos últimos anos infernais que tivemos, ela, assim como eu, não teria nenhuma gota a mais para derramar, embora aquelas fossem lágrimas de felicidade. Nem isso tenho. Sei que voltar para Santa Bela após cinco anos, para a sua cidade natal, tem um significado especial para a minha mãe que, com certeza, não significa tanto assim para mim, no entanto, às vezes, o fato de ela ser uma típica "manteiga derretida" não ajuda muito. Afinal, é só uma cidade, meu Deus!
Não chego a odiar Santa Bela, ela só não está na minha lista de lugares preferidos. Não apenas pelas lembranças ruins e falta de afinidade com a maioria das pessoas locais, por mim tudo bem esse último fato, mas também pelas especulações que vão surgir à nossa volta. Cidade pequena, fofoca grande.
A falência repentina da minha família não me incomoda. Não é algo tão drástico para mim como é para o meu pai ou para a minha mãe, sempre vivi sem extravagâncias. Já as situações por trás da falência sim me incomodam. Isso me apavora, sobretudo pois ter que explicar para centenas de pessoas diferentes me fará reviver sentimentos que desejo enterrar.
Resumidamente, logo após o incidente, há dois anos, meu pai quebrou seu escritório de advocacia com clientes e financiamentos ruins, os bancos não deram trégua, não tivemos tempo antes que tivéssemos que sair dos custos elevados da capital e vim para o interior. Nem minha mãe ou eu o culpamos, apesar de tudo. Têm sido anos difíceis para minha família e, como tal, vamos passar por tudo juntos e nos apoiando. Embora minha opinião continue a mesma sobre Santa Bela: não devíamos ter voltado.
Minha mãe assoa o nariz e eu me encolho. Não posso lidar com as lágrimas agora. Antes que as "limpezas no nariz" dela se torne realmente um choro copioso, pulo do meu assento, passando por ela com minha mala em mãos. Eu só tenho uma, ao contrário dela. Tento ser otimista, me persuadindo de que será uma nova vida, um recomeço como minha mãe, meu pai e eu queríamos, o problema é que sou realista.
Sendo a primeira pessoa a descer do ônibus, sou alvo de olhares curiosos. Abaixo a cabeça e coloco meus óculos escuros. O sol extremamente quente e no ápice me alcança quando ponho o pé na calçada, minha blusa logo começa a grudar em meu corpo e me arrependo imediatamente de ter saído do único luxo que a lata velha e antiga oferece, o ar condicionado.
Paramos justamente no centro de Santa Bela, na Praça Multieventos. O reflexo do brilho do sol no chão do calçadão faz meus olhos arderem com o excesso de luminosidade, mesmo eles estando protegidos por meus óculos. Suspiro. Viro para a porta do ônibus esperando minha mãe. Vez ou outra uma brisa morna passa, trazendo também um cheiro rançoso de fumaça e coisas queimadas. Estamos na cidade somente a cinco minutos e já quero ir embora. Meu único alento é saber que daqui a pouco estarei em meu quarto lendo e fugindo desta realidade – se o cansaço não me vencer antes.
Sinto uma leve inquietação no fundo da minha mente e tenho certeza de que vem dos olhares que estou recebendo. Não vejo de quem são, porque me recuso a levantar a cabeça, porém sinto que estou sendo observada. Torço para que nenhuma dessas pessoas sejam conhecidas, mas sei que é pedir demais em um lugar tão pequeno como essa cidade. Longe de mim ter vergonha da nossa situação atual, afinal, todo o clã Mafra tinha crescido do nada e construído nome e uma pequena fortuna. Eu apenas não quero conversar com ninguém no momento ou ter que dar explicações sobre nosso retorno.
Tento não pensar muito sobre isso e foco minha atenção no pouco da cidade que consigo enxergar de onde estou. Vejo os pináculos da paróquia ao longe como dois pontinhos no horizonte. Nossa casa – um dos poucos bens que sobrou para nós – está localizada no mesmo bairro, então sei que meu desejo de me enfiar no meu quarto pelo resto do dia vai demorar um pouco, ainda mais sem transporte. Meu pai não virá nos buscar. Típico dele. Me arrependo imediatamente do pensamento, não é culpa dele.
Minha mãe desce do ônibus logo em seguida, como se estivesse diante de uma linda cidade em Londres e rodeada por cheirosos campos de lavanda, tamanho é seu sorriso. Vai entender.
– Mãe, se a senhora estiver errada sobre voltar, juro que vou morar com a tia Margô no outro lado do país – aviso, quando ela fica ao meu lado contando suas malas.
– Até parece que você, que já está derretendo aqui, aguentaria o calor de lá. Sem falar naquele monte de bichos de estimação da sua tia.
Realmente, não é uma boa ideia, mas Santa Bela também não passa um bom pressentimento.
– A senhora sabe que dentre todas as cidades que poderíamos ter ido morar, esta era a última em minha lista – insisto com ela.
– Você parece o seu pai falando assim – ela solta um suspiro, antes de continuar:  – E não vejo o porquê, vocês dois amavam Santa Bela, filha – diz ela, ainda verificando se está tudo certo com nossas coisas.
          – Não mais... – murmuro, sem que ela ouça.
Eu não vou revelar a ela o verdadeiro motivo de minha aversão por Santa Bela. São muitos, não nego, contudo, há um que poucos sabem. E, de alguma forma, parece ser o mais significativo, infelizmente. Já com relação ao meu pai, a situação é conhecida por nós duas. Esta é a cidade em que ele cresceu e onde sua família mora, voltar na situação em que estamos não deve ser algo bom para seu orgulho. No entanto, se tem uma coisa que Leon Mafra e eu concordamos plenamente é na felicidade de dona Cecília. O que quer dizer que nem sempre é algo bom de se fazer.
Mordo a parte interna da bochecha para não suspirar pela centésima vez desde que soube da nossa volta. Será uma estadia longa, eu já previa. Tudo em Santa Bela me lembra do porquê eu havia ficado tão aliviada em ir embora.
O suspiro escapa. Estou permitindo, outra vez, que minha mãe dirija o curso da minha vida. Eu realmente não me importo, há uma diferença entre estar viva e viver e se isso quer dizer que não superei, não ligo. Contanto que eu saia do radar dela de preocupação e que ela não sinta que falhou comigo como mãe, eu deixo que ela faça tudo: tome as rédeas, escolha meu destino, escreva minha história ou o que quer que ela queira... menos a ouvir dizer o nome dele.
A pessoa antes do motivo.
Cada músculo do meu corpo enrijece. A necessidade de me virar e olhá-lo é mais forte que qualquer pensamento racional. Eu viro, sem estar preparada para vê–lo.
Noah Aguiar.
– Olá, senhora Mafra, como vai? – ele diz, sua voz é lenta, debochada e me enfurece imediatamente.
Sou pega desprevenida com tudo o que sinto ao tê–lo tão perto. Penso que o lado bom de viver constantemente com uma dor é que você se esquece de outras feridas que doeram tanto quanto, mas, olhando Noah, confirmo que a ferida que carrega seu nome no meu peito foi reaberta.
Tenho meu antigo namorado parado na minha frente depois de cinco anos e ele me olha como se gostasse do que vê, como se não fosse o motivo para que eu não quisesse pisar nessa cidade. O problema é que estou fazendo o mesmo que ele e tem algo de errado comigo, sua bela aparência deveria ser indiferente para mim, porém é inevitável esconder as borboletas que sinto em meu estômago.
Evito cruzar meus olhos com os seus, justamente por isso, a sensação se agravaria mais, no entanto, não evito olhar para o resto de seu corpo. A combinação de terno com motocicleta deveria ser cômica, se não ridicula, isso porque, quando pensamos em motocicleta, pensamos em motoqueiros, ou seja, bandana, calças de couro e coletes. Bem, não é o que tenho na minha frente.
Eu tinha percebido o homem descendo da moto todo seguro de si  instantes antes, lembro também o quanto o achei sexy e másculo justamente pelo fato de estar usando um terno azul escuro impecável e pela máquina assustadoramente potente as suas costas. Eu só não percebi que era ele até vê-lo diante de mim.
Meu queixo cai com a cena que vejo em seguida.
Minha mãe o abraça e Noah tem a audácia de abraçá-la de volta, enquanto me olha descaradamente. Esse é o problema das pessoas não saberem a verdade sobre ele, elas nunca saberão quem realmente é Noah Aguiar.
Meus olhos ficam em fendas quando noto um quê de satisfação em sua fisionomia ao analisar seu rosto, como se o fato de eu estar de volta, na situação em que minha família se encontra, desse a ele uma certa felicidade.
Cretino.
Ele se separa de minha mãe e ela, como a afetuosa que é, começa a contar–lhe praticamente tudo sobre nossas vidas. Pelo amor de Deus, mulher, sabe um dos problemas da sua filha? Está bem aí na sua frente! Eu bem que quero gritar, porém me detenho. Infelizmente, a única coisa que posso fazer é encará–lo através das lentes escuras dos meus óculos, quando o que realmente quero é tirar seu sorriso pretensioso com uma bofetada.
    Quem é você e o que fez com o garoto que amei?
Quase nada em Noah se assemelha ao garoto que conheci e fui estupidamente apaixonada. Embora a aparência permaneça praticamente a mesma, é seu jeito e sua persona que não são mais os mesmos e até seu estilo está diferente. Vejo isso na arrogância e segurança de sua postura, no modo como parece imperturbável com seu blazer aberto e em suas mãos, que estão em cada bolso da calça, enquanto finge um falso interesse no que minha mãe fala. Ele simplesmente está parado e me olhando, com os cantos da boca levemente arqueados. Noah exala prepotência e, mesmo assim, mesmo com todo nosso histórico, é inegável o quanto está bonito.
Por mais que não queira, preciso admitir: ele facilmente é o tipo de muitas mulheres, até mesmo o meu, e isso é algo de que não me orgulho nem um pouco.
O terno lhe dá um ar elegante, a camisa escura sem gravata, aberta o suficiente no colarinho, mostra um pouco da sua pele bronzeada por baixo. Eu não preciso dizer que seu corpo é espetacularmente musculoso, sinal de que se cuida muito bem.
Posso sentir mais do que ver seus olhos castanhos sobre mim, por isso subo minha atenção para seus cabelos rentes e escuros, cortado no estilo militar, mas minha atenção desce involuntariamente para sua boca sensual, que está na cara que não sorri muito verdadeiramente. Ele sempre foi o tipo de pessoa que se destacaria em uma multidão só por ser reservado e não querer chamar atenção.
Finalmente nossos olhos se cruzam e, como uma porta, de repente entro neles, no entanto sou repelida. Antigamente, costumava pensar que era fácil decifrá–lo, agora estou diante de uma barreira impenetrável, contida e silenciosa.
Noah também está me analisando. Vejo que procura alguma coisa, talvez algo que remeta à antiga pessoa que fui e, mesmo que aquela garota não exista mais, sua busca me incomoda, pois a pessoa que fui era fácil de manipular, de enganar, já a minha nova "eu" não. Apesar dos sentimentos conflitantes em minha mente, uso minha expressão mais "intimidadora" na frente dele, a fim de não demonstrar tudo o que está se passando por ela.
Eu quero ferir Noah Aguiar tanto quanto ele já me feriu, talvez até mais...

MECÂNICO ARROGANTEOnde histórias criam vida. Descubra agora