Cinza como teus olhos

10 0 0
                                    

Eu prefiro ver o oceano apenas uma única vez
E sentir falta dele pelo resto da minha vida
Do que nunca sentir a areia abaixo dos meus pés descalços
E nunca ouvir o som das ondas quebrarem
(Ocean Native)

   Ariel e eu paramos no calçadão; ele segurava o seu violão com a destra e tapava a frente dos óculos com a canhota, impedindo que as gotas de chuva tocassem as lentes deles — eu não me importei com a chuva dessa vez, mesmo que eu sempre reclamasse que odiava quando meus cabelos ficavam ensopados. Você gostava quando a chuva deixava cachos nas pontas dos seus fios pretos, então eu deveria aceitar aquilo por hoje também. O céu estava completamente cinza e então eu pensei que não poderia ter escolhido o melhor dia para vir aqui com ele; a praia estava vazia, como nós gostávamos, e o ambiente parecia perfeito para a melancolia que pairava no ar. Ariel olhou para mim depois de muitos minutos evitando fitar o mar; ele não queria descer, eu sabia, mas não pude deixar de trazê-lo aqui mesmo que contra sua vontade; eu sentia que nós dois precisávamos disso: o sopro da maresia que deixava as peles grudentas, o som violento das ondas contra o rochedo, a espuma salgada que respingava em nossas vestes e a paisagem semi-morta, quase inexistente, que você admirava tanto.

   Franzi as sobrancelhas para ele e o vi dar de ombros; então, ele olhou para o lugar que antecipava, perdendo-se no movimento das ondas que quebravam no raso e nas gaivotas que deixavam pequenas pegadas na parte molhada. Aí, eu percebi; ele não queria chorar, mas queria e aquilo tudo era tão confuso para ele que eu não pude deixar de perceber cada sensação que se apossava de suas entranhas como uma avalanche que derruba tudo em seu caminho. Parecia que ele iria gritar e se desfazer em milhões de pedacinhos minúsculos que sumiriam do mesmo jeito que a água apagava as pegadas daqueles pássaros à beira mar. Parecia, também, que ele não produziria nenhum som, como se não fosse capaz, e então murcharia como uma flor daquelas que sua tia-avó deixava na sala, mas esquecia de pôr na parte ensolarada. Ariel quase deixou o violão cair quando uma onda grande cobriu as rochas que ficavam mais perto da água, como se lembrasse das apostas que você fazia quando isso acontecia. Inesperadamente, ele disse:

   "Aposto que a água vai até aquela rocha em formato de coração."

   "Aposto que vai até aquela mais acinzentada" rebati. Então ficamos olhando juntos, sem expressar empolgação ou divertimento ou algum sentimento que não beirasse o tédio e alguma outra sensação que eu não conseguia descrever, mas que esmagava meu coração como um martelo que batia num prego: não tinha graça quando éramos nós que iniciávamos as apostas, parecia uma tentativa barata de copiar o que um dia foi a sua essência; era quase como copiar o seu jeito molenga de caminhar ao lado de Ariel, as palavras que você inventava quando juntava duas outras, sua mania de carregar um violão para todo lugar que ia. Ou seus sapatos rabiscados, as suas unhas pintadas com esmaltes multicoloridos ou as camisas das bandas que você nem conhecia, mas que insistia em usar para parecer legal e maneiro.

   "Ganhei" disse Ariel, depois de um tempo — eu nem tinha prestado atenção, minha mente se perdeu em algum momento entre o pensamento pesado que era a sua lembrança e os sentimentos que eu e Ariel sufocávamos naquele momento. Respondi um murmúrio quase inaudível e não sei se ele ouviu aquilo. Torci para que não, pois eu sabia que aquela confirmação tinha saído como um lamento inconformado, não com a derrota no pequeno jogo que fizemos, mas com o fato de que não foi você que iniciou a brincadeira. Eu tinha certeza de que ele queria ir embora, agora mais do que antes, porém eu não podia deixá-lo escapar com a desculpa de ser pesado demais; eu sabia que estar ali era como se submeter à uma espécie de tortura psicológica que arranca sua felicidade com garras compridas e firmes, mas eu também sabia que evitar o choque seria pior do que nunca passar por ele — era como não aceitar e viver na ilusão de que tudo ainda estava como deveria ser, quando, na verdade, sua vida tinha mudado tanto que você nem poderia ter certeza de que seu próprio nome ainda continuava o mesmo.

OceanoOnde histórias criam vida. Descubra agora