Ano de 484
- Princesa, o alfaiate está a sua espera na sala de reuniões. - Anunciou uma empregada e logo se retirou do quarto.
A cabeça de Felia não parava de doer. Mesmo após os remédios e o banho com agua quente que tanto a relaxava, a dor não desaparecia. Quando chegava nesse ponto ela sabia exatamente o que precisava fazer para que as vozes não retornassem, mas não queria recorrer a aquele método novamente. Sentia que toda vez que precisava fazer aquilo para amenizar a situação uma parte de quem ela era morria. E era apenas uma medida provisória, já que a dor e as vozes sempre voltavam. Cada vez em intervalos menores de tempo.
Naquela manhã ela não podia se deixar levar por tais pensamentos. Tinha de estar focada para que nenhum acidente ocorresse. Precisava escolher um vestido para o baile que aconteceria na noite do mesmo dia.
O baile... Felia detestava bailes. Sentia-se obrigada a participar agora que seu irmão mais velho conseguiu uma conquista em uma batalha ao Sul do continente. Todos esperavam que ele se tornasse um Cavaleiro de Ônix enquanto Felia assumiria o lugar de sua mãe. Isso significava, é claro, que todos queriam corteja-la durante as festas visando o trono. No começo ela achava divertida a maneira como os pretendentes se aproximavam dela puxando assunto. Alguns gaguejavam, outros pareciam recitar falas ensaiadas. Os mais corajosos e confiantes eram os mais engraçados. Quando esses se aproximavam Cassius fechava a cara. Poucos minutos depois eles diziam coisas como 'vou ali pegar mais bebida' e desapareciam.
Ela não estava nem um pouco a fim de deixar sua torre, mas firmara o compromisso com o atelier há dias e estava curiosa sobre a jovem costureira que tanto ouviu as moças comentarem no ultimo baile.
Quando chegou à sala de reuniões três garotas estavam enfileiradas ao lado da mesa no fundo da sala. Alguns carreteis de linha e fitas estavam jogados sobre a mesa. O alfaiate, um homenzinho atarracado, se movia habilmente entre elas conferindo os vestidos e dando ordens para as garotas que já haviam notado a presença da princesa e faziam sinais discretos que ele ignorava.
Felia parou a poucos passos do quarteto. Cassius a acompanhava trajando um uniforme militar com o brasão do reino costurado do lado esquerdo do peito. Distante do quarteto, próxima a cabeceira da mesa, havia uma jovem de cabelos loiros trançados observando a cena com olhar de desaprovação. Parecia conter um sorriso.
- Devo supor que o trabalho não fora terminado a tempo? - Perguntou a princesa em alto e bom tom pegando o homenzinho de surpresa.
O susto foi tão grande que ele espetou o próprio dedo com uma agulha e virou-se zangado. Quando viu que a princesa o encarava e Cassius avançava em sua direção o homenzinho pareceu diminuir ainda mais. Fez uma reverencia tão longa enquanto se desculpava exageradamente que Felia sentiu o desejo de ordenar que ele permanecesse assim um pouco mais como castigo. Contudo, não tinha tempo para brincadeiras. Fez um sinal para Cassius que recuou a contragosto.
O homenzinho se recompôs e apresentou-se como Vile, o Alvo. Muito embora sua aparência indicasse que ele não deveria ter mais do que quarenta anos, seus cabelos partidos ao meio caiam sobre suas orelhas como duas nuvens brancas densas.
- O alvo. - Repetiu Felia com um sorriso malicioso no rosto. - Ainda bem que não pediu para que adivinhássemos. É tão pequeno que seria difícil de acertar.
A garota no canto da sala não conseguiu conter um sorriso zombeteiro.
- E você, quem é? - Perguntou Felia com bastante interesse, acreditando que ela seria a garota dos boatos.
- Celeste Vankourt, alteza.
Celeste fez uma breve, porém satisfatória reverência.
- Estou aqui para acompanhar as modelos e esclarecer suas duvidas se estiverem dentro do meu conhecimento.
- Foi você quem costurou os vestidos?
- Quase todos. - Celeste se adiantou e aproximou-se das modelos. - Os dois primeiros eu fiz os desenhos e o terceiro eu desenhei e costurei.
- E o cabelo de algodão ali, o que fez?
Celeste engoliu em seco.
- Supervisionou o trabalho e nos deu o suporte que precisávamos.
O homenzinho pareceu satisfeito com a reposta. Felia também gostou. Estava começando a ter bons pensamentos sobre a garota.
- Pois bem. - Disse e se aproximou de Celeste. - Não tenho tempo para desperdiçar. Qual dos vestidos você me recomenda e por qual motivo.
Celeste por um momento pareceu perder o ar. Ela olhava para as modelos como se buscasse por ajuda, mas nenhuma delas parecia disposta a abrir a boca. Por fim a garota respirou fundo e começou a dizer enquanto caminhava na direção do terceiro vestido.
- Quando soube que sua alteza desejava um vestido para ser usado em um baile desenhei as duas primeiras peças acreditando que a satisfariam. No entanto, ao ouvir mais detalhes sobre seu tom de pele e medidas... - Celeste fez uma breve pausa quando a princesa levantou uma das sobrancelhas. - Tive esta ideia.
Ela apontava para um vestido longo rodado amarelo canário. Na barra do vestido, fios verdes e prateados foram bordados entrelaçados, subindo por todo a peça como uma trepadeira escalando a cintura da modelo e parando na metade do busto. As costas do vestido eram completamente abertas.
- Ele é um tanto ousado, mas muito seguro. As trepadeiras disfarçam pequenas armações metálicas que acompanham a costura e firmam a peça e tudo mais no lugar sem desconforto. Veja.
Ela fez um sinal e a modelo rodopiou e se movimentou como se estivesse dançando uma valsa que só ela podia ouvir. Seus movimentos eram graciosos e bastante fluidos apesar de seu rosto estar petrificado pelo medo de errar em um momento tão importante.
- As armações metálicas espalhadas por todo o vestido dispensam o uso do corpete e também dos aros que tornariam o vestido mais pesado. É completamente seguro, confortável, leve e... para falar a verdade acho que além de ficar fabuloso com o seu tom de pele, o vestido combina com os seus olhos. Eles são muito bonitos, alteza.
Parecia um elogio sincero. Muito mais do que qualquer elogio que Felia ouviria naquela noite. Infelizmente, ela não tinha autorização para convidar qualquer pessoa para o baile. Seria um evento fechado com convidados escolhidos a dedo pelo Rei e seu comitê para discutirem sobre o torneio da década que começaria em breve. Celeste era bonita e inteligente, teria sido uma excelente companhia.
- Você tem bons argumentos. Celeste, não é mesmo? - A garota assentiu com a cabeça. Felia já estava de olho no vestido amarelo. Ele combinaria muito bem com o traje de Cassius. - De fato, meus olhos e esse vestido tem tudo a ver.
A princesa se aproximou do Alfaiate que tremia como uma criança com medo do escuro.
- Seu atelier tem boas peças. Seria uma pena se eu dissesse que não e boatos ruins se espalhassem. Sua reputação cairia bastante. - Os olhos de Alvo lacrimejaram quando a princesa disparou essas palavras. - Talvez eu possa elogia-lo essa noite durante o baile enquanto uso o vestido, mas tenho uma condição. - Ela olhou para Celeste e sorriu, depois voltou sua atenção para o homenzinho que parecia disposto a fazer qualquer coisa. - Demita a garota.
Felia deu as costas e se retirou da sala. Cassius ao passar pela porta ordenou a um empregado que pegasse o vestido com o alfaiate e o levasse imediatamente para o quarto da princesa. Depois acelerou o passo para alcançar Felia.
- Porque você fez aquilo? Ela estava indo muito bem, claramente tem muito potencial. Eu nunca, em todos esses anos frequentando bailes com nobres de todo o continente, vi uma ideia como aquela em um vestido.
- Eu também não. Foi por isso que coloquei aquela condição. A garota não tem mais nada para aprender com aquele nanico. Se ficasse no atelier por mais tempo aprenderia coisas inúteis como bajulações e choramingo na frente dos clientes. Um dia ela vai me agradecer pelo que fiz.
Cassius a encarava com desaprovação. Felia não se importava. Sentia-se bem. A dor de cabeça parecia ter passado. Estava mais interessada agora em aproveitar o dia.
Estou com fome. - Disse para Cassius que balançou a cabeça ao perceber que o assunto anterior fora encerrado. - Peça a Mice para levar algumas frutas e um pedaço de torta de limão para mim no jardim. Estarei lá aproveitando o sol.
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Deuses do Além
AdventureKlaus estava prestes a ser morto por um arqueiro misterioso quando uma chuva de laminas afastou o inimigo. Uma figura coberta por um capuz apareceu na entrada do beco, onde antes estava o arqueiro, completamente encharcada pela chuva. Quando olhou n...