20 de abril de 2013
O cheiro doce relaxou meus sentidos e me fez esquecer que a noite passada havia sido um desastre, por exatos três segundos, depois as memórias se atropelaram e percebi a tensão ao meu redor. A cozinha estava bagunçada e suja, Isabel estava inclinada sobre o forno aberto, espetando sua torta com garfo. Seus ombros estavam tensos e subiam e desciam de maneira forçada, como se ela carregasse um diabo nas costas assim como eu.— O cheiro está ótimo! — comentei exibindo um sorriso tão falso quanto uma nota de três reais.
— Obrigada, é a favorita do Ben, torta de banana e baunilha. — Ela continuou de costas, mesmo após fechar o forno e ficar de pé.
No dia anterior, depois da confusão no jantar, esperei Benjamim ir dormir e chamei todos na sala. Minhas palavras foram firmes e claras: A festa ainda vai acontecer. Com o recado dado, todo mundo deu continuidade ao plano original: tirar Ben de casa e mantê-lo longe o máximo de tempo possível.
O sábado estava ensolarado, pela janela da cozinha eu podia ver o pequeno jardim nos fundos da casa, as flores ainda eram brotos e provavelmente iriam morrer no inverno e samambaias ocupavam grande parte do lugar, espaçosas como eram. Era mais fácil olhar para as plantas do que para Isabel, essa estava visivelmente triste e furiosa, aquelas esbanjavam beleza como todos os dias.
— Isabel…
— Ele tem razão, no fim das contas — interrompeu antes que eu pudesse dar algum tipo de consolo, a voz embargada de mágoa.
— Otávio exagerou. Estava alterado e emotivo e você era uma boa presa para ele descontar a raiva. — Nos meus cinco anos de convívio com ele, já havia ficado mais que claro que a forma de Otávio lidar com o acidente do hotel era a agressividade verbal. Ele costumava gritar, xingar e chorar escondido, não escolhia uma vítima, mas Isabel parecia ser sua opção favorita.
— Não, não levei tudo o que ele disse a sério. Mas a parte de que estou morta talvez seja verdade. — Sua voz foi diminuindo até desaparecer, se virou por completo e eu encarei seus belos olhos negros vazios.
Vazios. Era como olhar o breu, não havia brilho, não havia nada, apenas uma viciante imensidão de vazio.
Pisquei com força e diminui a distância entre nós, deixando ela despencar sobre meus braços. Envolveu minha cintura e enterrou a cabeça em meu pescoço, estava tremendo e chorando e eu vulnerável.
A antiga Florence não faria nada se estivesse ali no meu lugar, ela a abraçaria por não saber o que fazer e choraria também. A antiga Florence não entendia o significado das lágrimas e as interpretava como uma expressão de tristeza, até mesmo chegava a desprezar. Mas a Florence da vida que me deram aprendeu que lágrimas eram mais que um sussurro de dor, elas eram um grito no vazio que ecoava e não chegava a ninguém, pelo menos era assim em jovens traumatizados.
— Talvez — sussurrei em seu ouvido, apertando seu corpo contra o meu como se aquilo você cessar seu choro. — Quer dizer, sem sombras de dúvidas, todos nós estamos mortos por dentro. Mas nos levantamos da cama todo santo dia e mesmo contra as nossas vontades mantemos esperanças de que tudo vai mudar, de que não iremos mais precisar viver com o medo e poderemos voltar para casa, para o pouco que ainda restou de nossa antiga vida. Gostamos dessa fantasia de que as coisas vão melhorar e, no fundo, é essa centelha que nos mantém aqui. — Passei a mão entre seu cabelo preto e curto e macio, ela havia parado de tremer e meu aperto relaxou. — Vou me corrigir, somos pessoas quase mortas por dentro se alimentando da inesgotável e pequena fonte de esperança.
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Se Essa Vida Fosse Minha
Mystery / ThrillerFlorence Campos tinha como objetivo primordial se divertir e aproveitar todas as atrações do novo hotel da Warrior Company, mas um suposto ataque terrorista pode levar seus planos por água abaixo e mudar sua vida para sempre. Sendo forçada a se sepa...