O Incidente

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Houve dias em que Edgar não possuía mais interesse pela música. Anos após sua primeira prova para integrar a excelentíssima orquestra de sua cidade, como solista no piano, as medicações para sua doença o deixaram absolutamente inerte.

Lembrava-se, como em um sonho surrealista, das cores e faces e rostos e sentimentos que nutrira outrora. O que agora não mais correspondia à sua realidade. Seus dias possuíam sonoridades brandas, acinzentadas e úmidas. Sentia-se um fedor pútrido proveniente de sabe-se lá que local do interior de seu corpo. Suas vestes eram brandas, acinzentadas e úmidas, na superfície, oriunda da chuva que despencava do céu como se lhe fosse um castigo.

Os telhados da velha cidade tilintavam ao som de cada nova gota que se chocava com seus metais, suas telhas e limiares. O homem tinha claro para si que desconhecia o rumo tomado, era mais simples assim, repetia mentalmente enquanto arrastava as botas que vestira, calçada após calçada.

Quando em vez, algum transeunte lhe cumprimentava, um leve meneio com o chapéu e a mão enluvada era tudo que Edgar sentia-se capaz de promover em resposta. Lembrara-se então da direção que originalmente tomara. Ao acaso fora parar em frente à loja de fármacos, onde freneticamente começou a buscar em seus bolsos a receita que o Senhor Doutor lhe fornecera.

Não havia nada, nem sequer sua pequena pasta onde guardava seus documentos. Praguejava pela inutilidade de sua memória, não lhe restara um dia sem que ela não lhe traísse. Entretanto, àquele ponto em que estava, era possível vislumbrar de relance a ponta da torre da igrejinha em que tocara um instrumento musical pela primeira vez em sua vida.

Era um homem de algumas posses, sua família era abastada, mas nunca lhe dedicara maiores investimentos. Notavam na música o caminho exato para o seu fracasso, enquanto ele entrevia a única via para uma prometida salvação, fosse ela divina ou meramente terrena.

Levado pelas memórias, Edgar deu por si postado em frente à igrejinha, que levava Fátima como sua protetora. A chuva, que agora jorrava aos borbotões pelas calhas e condutos da rua, o coagiu a adentrar aquele espaço de odor tão longamente conhecido. O cheiro leve das flores e velas invadiu seu nariz rapidamente, pode entrever a pequena estante que guardava os livros de cânticos e adivinhou a poeira e mofo que avançava em seus interiores.

Não havia absolutamente ninguém dentro daquele local, outrora tão santo para si. Ele desejava, ardentemente que houvesse. Precisava despejar as palavras que se acotovelavam em sua garganta. E, no absoluto vazio, puxou a banqueta e iniciou uma das sinfonias dos mestres a quem adorara no órgão grudado à parede. Nenhuma comoção, nenhum sentir acelerado do sangue sob suas pálpebras ocorreu.

Seguiu mecanicamente até o fim daquela composição, quando um estrondo breve chamou sua atenção. Algo semelhante ao bater de portas das saletas onde os religiosos se escondiam, por vezes moravam. Sentia-se confuso, visto que o temporal fechado persistia lá fora, misturando-se com qualquer sonoridade interna à casa religiosa. Fechando o tampo do humilde instrumento, afastou delicadamente a banqueta e seguiu na direção da saída daquele lugar, um sentimento de vazio ainda maior lhe invadira.

Contudo, antes que pudesse perceber, antes que alçasse a saída daquela estrutura que lhe soava cada vez mais escura e pungente, distinguiu uma figura espectral no seu encalço e, muito muito antes que pudesse tentar qualquer defesa, tomou uma pancada em sua cabeça, vindo a desmaiar e esvaindo-se entre a lucidez e os sonhos.

Desconhecendo a quantia exata de tempo que permanecera desacordado, Edgar pulou em sobressalto na direção da parede mais próxima, ensaiando, em um reflexo tardio, proteger sua retaguarda.

Foi quando tomou ciência da dor que lancinava sua cabeça, tocando-a e notando a textura macia e molhada da lesão craniana que fora acometido. O sangue, já escuro, que observou em seus dedos, tinha uma aparência púrpura e seu odor lhe era fétido, metálico. A saleta em que se encontrava era minúscula, contando com pouco mais do comprimento do corpo do pobre homem.

O local não permitia a entrada de nenhuma luz externa, apenas uma lâmpada amarelada pendia retilínea do teto, presa por um cabo preto, dando um ar doentio à cor da sua pele e de todo o ambiente. O único objeto além daquele era o catre em que acordara, sem qualquer capa ou coberta, jazia exposto em sua espuma.

Era possível escutar um murmúrio de vozes desconhecidas próximo à porta. Nada de grande tom, aparentemente uma conversa banal sobre futilidades. O clique da lingueta da porta quebrou seus pensamentos e afastou sua dor, restou-se apenas a ansiedade.

Gritando para ser liberto, Edgar investiu contra o Senhor Doutor, que o agarrou, com auxílio de dois enfermeiros, chamando seu descendente a acalmar-se. Explicando-lhe que desmaiara no meio de sua apresentação de estreia, que fora socorrido, levado pelos seus colegas e amigos até sua casa, que o médico acabara de chegar e que ele precisava ser atendido.

Edgar, empalideceu diante do choque, voltando o olhar para o amplo quarto, desvencilhando-se dos braços paternos, a grande sala musical anexa onde seu piano quedava-se inerte. E o homem correu para seu piano e iniciou a tocar novamente, sem nada lembrar-se. 

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⏰ Última atualização: Jul 05, 2020 ⏰

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Edgar, o PianistaOnde histórias criam vida. Descubra agora