A ressurreição de Pedro

66 5 4
                                    

Seo Pedro era homem de incontáveis cicatrizes. Só nas mãos tinha para lá de uma dúzia, muitas, das quais, fazia questão de descrever como heranças das brutas batalhas nas lidas da roça, normalidade dos homens de sua época. Contava, até certo tempo, sobre a história de cada uma das marcas na pele, exibindo suas narrativas como quem desfila troféus. Era assim na feira aos domingos, nas rodas de amigos, nas sombras às barrancas dos rios em dias de pesca, nos bares durante as prosas regadas às discretas talagadas de cachaça. Mas, costumava se sentir como uma estrela no palco, ao rememorar suas histórias para a família, principalmente nos dias de visitas, casa cheia, quando reforçava para ele mesmo a ideia de que era o ator principal.

- Essa daqui oh! Dizia entusiasmado, levantando o braço e apontando o dedo para o bizarro talho que cruzava as costas da mão esquerda em formato de cruz.

- Ganhei no dia de Nossa Senhora da Conceição! Falava, demonstrando uma ponta de anseio, enquanto com os olhos evocava a vigilância de todos. Quando o silêncio pairava no ambiente, entendendo que os presentes demonstravam profundo interesse pela sequência da história, mesmo os que já a tinham ouvido por incontáveis vezes, Seo Pedro lentamente retirava o chapéu da cabeça, em sinal de devoção e respeito à santa e o levava ao encontro do peito, suspirava profundamente e soltava:

- Essa veio de castigo! Dizia olhando consternado para a marca na longa mão enrugada.

- Na ganância de dar conta da colheita da cana e fazer dinheiro para ir à cidade no fim de semana, não dei ouvido às clemências da mãe para manter respeito ao dia santo. O facão estava mais afiado do que nunca. E no primeiro golpe na touceira da caiana, veio o resvalo tinindo. A lâmina entrou rasgando manga da camisa com carne e o sangue quente jorrou longe.

- Só parou no osso! Dizia fazendo cara de dor, como quem ainda sentia as aflições do golpe. Esse revisitar da tragédia nunca abandonada, parecia amenizar a dor quando todos reagiam com impacto ou susto. O homem bruto, envelhecido, ali, no meio da sala, no centro da varanda ou do terreiro, disfarçava o mendigar da compaixão e piedade dos presentes pela tentativa de construir uma imagem de valente, que heroicamente a tudo suportava.

Era sempre assim, com essas e com as outras várias cicatrizes. Dizia que todas elas haviam provocado expiações. Mas, depois de um certo tempo, passou a dizer que as que mais doíam eram as cicatrizes na alma. As marcas provocadas pelo facão, pelas espinheiras, por pontas de pedras e lascas de galhos secos, mordidas de bichos do mato ou por pancadas da vida na pele e até no osso, com o tempo haviam secado. Diferentemente, as feridas da alma, estas não se amofinavam.

Para o homem de cabelos esbranquiçados pelo repetir das estações, lesão na alma faz brecha que, no lugar do sangue, deixa escapar o que o sujeito, porventura, colheu de bom na vida. Por esse buraco no peito, que poucos enxergam, vão se alegrias e fica só aquilo que é desgosto. Rasgo que não verte sangue não deixa a dor ir embora e a dor que fica fazendo eco nas veias é a dor que mais assombra. É feito bicho bravo que não divide a toca e espaventa tudo quanto ali deseja entrar!

Das feridas pequenas, pouco se regozijava. Aliás, nem dava tanta importância assim. Era como pecado de criança; destes que os anjos nem riscam nas cadernetas celestiais. Ou melhor, até anotam, mas se encarregam de apagar antes de mostrar pra Deus. Essas nódoas nas rugas davam mais para anedotas do que causos traumáticos. O velho matuto, sempre depois de três ou quatro goles, batia no peito quando o quente da cachaça descia queimando a goela e fazia questão de deixar claro que homem como ele, parido pela finada mãe Anastácia, combinação afro-espanhola, gente de muita fibra, e domado pelo pai, o espinhoso Severino, farofa de índio com escravo fugido, não era de baixar guarda para qualquer desaforo. 

– Esses furinhos aqui no dedo! Zombava ele já um pouco tonto – é mordida de lontra! Foi no dia que soquei a mão na loca do bicho e arranquei as crias para dar o de comer aos meus irmãos na seca de sessenta e três.

A ressurreição de PedroOnde histórias criam vida. Descubra agora