MORADA DO CORAÇÃO PERDIDO

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Onde estiver teu tesouro, estará também teu coração. A viagem é longa e já saí da cidade, mas tenho ainda uma meia dúzia de horas adiante, e o caminho está cheio de árvores. Há toda uma brancura do céu cheio de nuvens, trilhos de trem desenhando sua infinidade, e pedaços amarelos de paisagem, que aparecem longe, nos vales, quando a luz do sol atravessa o manto branco. Devia ser onze horas da manhã, e eu sentia um cheiro de sereno: um cheiro de vento frio, de combustível, de cansaço.

Onde estiver teu tesouro, estará também teu coração. Existe um segredo guardado em mim, eu queria entregá-lo de volta às mãos do mistério. Sentir o que eu sinto, e não suspeitar, sequer por um segundo, que cada passo dado é em rumo do mistério. Mas não... Nunca. Eu costumava aceitar, com toda a força, o que não entendo. Mas são essas árvores, esse céu, a música das coisas, o vento, o sangue... Sempre que eu fecho os olhos eu descanso naquele peito e sinto aquele sopro morno, porque você respira e me esmaga com tanta vida: eu desapareço na imensidão de tantos caracóis.

Mas tento me achar, dissolver a cortina de palavras. Descobrir o sentido do que não foi dito, e principalmente daquela palavra que foi dita, quase inteira, enumbrada. Tentar entender quando foi que você morreu de ciúme, o quanto sentiu saudade, o quanto a gente se desentendeu. Eu vou encontrar a nós mesmos no riso, no fim da tarde, e vamos rolar numa cama qualquer, por esses e outros motivos? Lembro daquela vez, estava na sua casa. Sua mãe mandou você entregar uma imagenzinha de São Jorge para Dona Rita. Dona Rita, que via espíritos, viajou o mundo e professava fés e antepassados, você me disse quando a gente descia a rua, mas disse em tom de choça. Batemos palmas juntos, no portão, para chamá-la. Ela chegou e fez que ficou surpresa, surpresa demais.

Ela insistiu que a gente entrasse para tomar café. Deixou a estatueta no seu lugar definitivo, ao lado da Nossa Senhora Aparecida, e tinha junto um colar de conchas. Toda aquela casa era baixa, toda penumbras, cheirava a incenso. As plantas do quintal ziguezagueavam, cheias de sentido e curas dos males do mundo. Dona Rita jogava conversa fora, prodigalizando sorrisos e outros gestos. Mas quando se sentou à mesa, ficou grave, pôs açúcar na xícara, disse sem rodeios: vocês se encontraram mais uma vez, em mais uma vida. Vocês vão ficar juntos.

Mas o que é ficar juntos? Ficar-sendo, vir-a-ser. Já não estamos aqui juntos? E eu poderia, com todo o amor que você tem por mim, com toda beleza que existe, pedir mais? Podendo ou não, de qualquer jeito, eu peço sim, e peço com tudo que eu sou, e peço em silêncio. E me condeno por covardia a estar ao seu lado porque você simplesmente me ama. E a vida engana bem no sim e no não. Seja como for, não pude conter o estranhamento, ou na verdade o encanto. A gente sorriu bonitinho, e ver você sorrir me dá um calor. Sim, sim, sim, vamos ficar juntos, eu prometo, sim e sim, seja lá o que isso quer dizer. E como se não bastasse você pergunta a Dona Rita que encontros foram esses que já foram. Ela disse que a gente não precisa saber dos tantos homens e mulheres que já fomos. A gente riu, riu muito disso voltando a sua casa, e não tenho certeza se eu quis mesmo rir. Eu estou condenado a estar ao seu lado? Creio que estou, e abraço o fado, comungo o absurdo, me mantenho por perto e escuto tudo que você tem a me dizer, palavra por palavra.

Tanta coisa veio acontecer com a gente, abençoado seja o que existe entre nós. Ainda estou nesse trem, e, não sei, foi o langor da tarde, modorra do meio dia, adormeci no calorzinho manso. E quando acordei, percebi que tive um sonho, nele você me apresentava um outro homem que seria o amor da minha vida, e depois me cobriu de louro e honrarias, e promessas. Você era de uma felicidade plena e livre de qualquer assombro, e aquilo me assustou demais. Acordei num avultamento, uma corrente me atravessou. Não posso me esquecer nunca que você na minha vida é um caso em suspensão. Vamos ficar juntos, para sempre. Só que talvez não estejamos juntos, e talvez a vida nem seja um fato consumado.

Já escurecia. A viagem terminou. Estou pegando as minhas malas e as portas estão abertas. Aquele cheiro de mato, que sempre me inebria, vento manso de tarde tardia. Eu desço, cansado, todo angústias e você me abraça. Eu nem vi de onde você veio. Você estava tão feliz, e aquele era o mesmo sorriso que vi nos meus sonhos, aquele que me dá um calor. Esse sorriso que vou ter pela minha vida inteira, que riu daquela promessa de Dona Rita, mas que encheu minha vida das suas próprias promessas. Esse homem, que lembra minha cor favorita, o número do tênis que eu calço, e não faz ideia que nunca esteve tão feliz, quanto no dia em que me apresentou o amor da minha vida, em sonho. Eu não sabia. Não esperava que ele estaria lá, me esperando. Você me pegou de surpresa outra vez.

E na verdade essa é uma história que ainda está por ser escrita. Não que exista desfecho. Eu juro, eu não sei ponderar. Todas essas palavras enumbradas, que dizem sem dizer, ou dizem sem querer. As profecias, os colares de conchas e viagens longas, quando eu resolvo fugir pro mato, ou fujo pra você, simplesmente, porque com você a vida é mais que um sopro fugidio. Tudo isso fica guardado na eternidade. Aquele beijo que um de nós roubou do outro, naquela despedida que já virou rotina. Aquele beijo ainda não foi dado. E não talhamos as nossas iniciais num cadeado, para prender nas grades daquela ponte. Esse beijo, esse cadeado, as palavras enumbradas, todo esse caminho foi trilhado por tantas pessoas, antes de nós. Todas essas coisas que se tornaram ou não, que demoraram para terem sido, demoraram às vezes demais. Ninguém nunca me disse o que fazer, como agir, como essa história vai ser escrita no final.

Você pega a mala mais pesada, ainda que eu seja mais forte. A gente anda até seu carro e conversa coisas que nunca vou lembrar, e estamos no caminho até a sua casa, curtindo as emanações do ocaso, imensidão de luzes amarelas das cidades, lá no fundo. E eu continuo insistindo em tantos sonhos, em tantas viagens, em tentativas de encontrar o meu lugar, que talvez eu já tenha achado. Ecoa em mim, numa lembrança, num arrepio, uma frase que fica e desaparece comigo no vento, o Brasil é um país cheio de árvores e gente dizendo adeus. 

MORADA DO CORAÇÃO PERDIDOOnde histórias criam vida. Descubra agora