Acidental

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Era fim de tarde quando a vi pela primeira vez, o sol estava quase se pondo e foi de um banco da estação que assisti sua chegada, uma sombra entre tantas outras. Havia tumulto, gente, malas, barulho e a temperatura amena do outono que levava minha mente a diversos lugares. A estação de metrô era onde eu costumava ir à busca de histórias. 

E foi lá que encontrei minha própria história. Já havia publicado alguns contos em uma pequena editora local, sendo eu brevemente conhecida como a filha de um banqueiro, e almejava ser uma escritora de renome. Obviamente, uma família tradicional me envolvia, no entanto minha mente possuía uma visão diferente do mundo. Para quem acreditava no tradicional bom mesmo era não dar de frente aos meus pensamentos.

Lembro bem, ela usava um velho all star rasgado e sujo, uma jaqueta "boy" e falava sempre de como queria que o mundo se acabasse em chamas para acender seu último baseado. Lola era seu nome, uma garota de cabelos curtos e negros que graças a sua impressionante capacidade de convencimento virou minha vida ao avesso e fez com que eu tivesse certeza de que o avesso era o lado correto. 

Na plataforma havia dúzias de pessoas compactadas num caminho que ela tentou atravessar sem sucesso. Carregava uma mochila preta simples e um estojo que julguei conter uma guitarra. Evitando os transeuntes acabou por se aproximar do banco que eu ocupava junto a minha inseparável caderneta. Vi um ciclista atravessar a plataforma a toda velocidade e quando ela atravessou a rua lateral a estação sem percebê-lo, foi derrubada por ele. Instintivamente algumas pessoas se aproximaram da garota, fiz o mesmo sendo a primeira a toca-la. 

Falei com ela, porém continuava caída imóvel como se um ônibus e não uma bicicleta houvesse passado por ela. Sob críticas alheias para me afastar enquanto chamavam uma ambulância, continuei ali tentando falar com aquela estranha. Como num passe de mágica, seus olhos se abriram e um escuro profundo encontrou meus olhos de água e naquela maré escura, algo me envolveu. 

"Quem é você?" foram as suas primeiras três palavras, numa voz de veludo de uma mulher provinda das sombras. Minha tímida resposta se limitou a sussurrar "Adélia". Ela deu um sorriso leve, como se estivesse em qualquer outro lugar que não estatelada no meio de uma rua. O ciclista que desde o momento do acontecido estava mais preocupado com os estragos na bicicleta, pouco se preocupou em ver como a atropelada se encontrava, e aguardava impaciente a solução do caso.  

Ofereci ajuda que ela instantaneamente recusou com um sorriso ainda mais leve que o primeiro, e levantou-se lentamente. Conferiu se tudo ainda estava inteiro em si e nas suas coisas quando percebi um filete de sangue permear seus cabelos.

- Você deveria ir a um hospital – sugeri. Ela me observou por um momento e sem responder, virou-se, tirou sua carteira do bolso e entregou certa quantia para o ciclista que olhou para ela esbugalhado, sem entender. Ela arqueou as sobrancelhas, acendeu um cigarro e foi embora.

Aquele encontro com a "garota da estação", nome pelo qual passei a chamá-la nas semanas seguintes me rendeu mil teorias, ideias, trechos inacabados. Alguns sonhos nos quais ela me convidava para um café, mas todas as vezes que ia dizer seu nome ela sumia e eu acordava.

Eu ficava horas pensando que podia tê-la seguido, chamado. Só que todas as vezes que me flagrava pensando em tais possibilidades sobrevinha uma única pergunta simples: para que eu desejava aquilo?

Minha resposta demorou um bom tempo a chegar, e durante todo aquele tempo aprendi que as coisas mais óbvias são sempre as mais difíceis de entender.

Meses depois, o lançamento do meu primeiro livro foi num dia terrivelmente chuvoso e chamava-se "A Morte do Céu". Aquele dia parecia ter sido perfeitamente delineado para o lançamento, pois o céu parecia trajar as vestes negras da morte. Vários de meus contos anteriormente foram lançados em livros de vários autores e como aquela era minha estreia solo eu estava absurdamente nervosa.

A Garota da EstaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora