Akakor

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Parte I: O Túnel    O túnel era úmido, frio e estreito, porém grande o suficiente para que eu caminhasse livre e espaçosamente

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Parte I: O Túnel

    O túnel era úmido, frio e estreito, porém grande o suficiente para que eu caminhasse livre e espaçosamente. Poças formavam-se no chão e filetes d’água escorriam pelas paredes rochosas. Ao menos não precisaria me preocupar com a falta de água...
    A água que levei acabara após dois dias de caminhada e a comida duraria por mais cinco, talvez uma semana, se racionasse rigidamente. As baterias para minha lanterna teriam acabado há cerca de dez horas, se não fosse pela presença de organismos bioluminescentes nas rochas. Quanto mais avançava pelo túnel, mas úmido ele ficava; quanto mais úmido, mais bioluminescência era produzida nas paredes. Bactérias, presumi.
    Elas geravam uma espécie de luz azul fraca, porém suficiente para que enxergasse o caminho à frente. Organizavam-se em colônias, sempre próximas dos filetes e poças d’água.
    Meus pés doíam, inchados dentro dos tênis; minhas pernas estavam tão fadigadas que mal as sentia; minha cabeça latejava e minhas costas clamavam por um colchão todas as vezes que parava para descansar sobre o chão duro e áspero. Mas meu caos interno sequer se comparava com o caos do mundo.
    Os Estados Unidos da América queimavam enquanto seu povo marchava contra o Sistema, lutando por um mundo novo e melhor. A China e a Índia entravam em conflitos nas fronteiras. A Alemanha acusava a Rússia de encomendar o assassinato de um georgiano em Berlim. Boko Haram intensificava ataques à Nigéria. A Grécia adotava medidas de expulsão coletiva de migrantes vindos da Turquia. No meu Brasil, uma nova crise política se instaurava sobre uma econômica. Tudo isso durante uma pandemia. O mundo viva um caos instaurado por guerras políticas, econômicas e biológicas. Ao menos estava segura de todos aqueles males ali, naquele túnel estreito e úmido.
    Cuide dela por mim. As palavras na carta de Gunther, “Tatunca Nara”, continuavam a ecoar em minha mente. Eu estava prestes a resolver um mistério de séculos, envolvendo os mais antigos mitos e lendas, e a pergunta que mais me fazia era “quem é ela?”.
Crescendo em um antigo casarão português, tive a acesso a itens históricos que nem mesmo os mais importantes historiadores tiveram. Minha família colecionou livros, cartas e pergaminhos desde que o Brasil fora descoberto, tendo conhecimento de uma parte oculta da história. E fui assim que elevei Akakor a algo além de lenda.
    Após décadas lendo relatos, cartas e teorias, estudando mapas e analisando a história, tudo o que me restava era partir em busca de uma confirmação, e era isso o que eu estava fazendo.
    Ao contrário do que todos acreditam a Fortaleza do Rio Negro não foi erguida apenas para o controle de navegação pelo Rio Negro e Solimões, mas também para guarnecer e bloquear a última passagem conhecida para Akakor, uma civilização tão antiga quanto os Maias, Incas e Astecas.
    Durante os anos de colonização, os povos nativos foram mortos ou escravizados e, com eles, sua cultura era esquecida assim como os seus deuses. Akakor não foi uma exceção. Era tão misteriosa que até hoje não se sabe quais eram as tribos que a habitava, e a sua localização exata jamais havia sido descoberta. Poucos souberam de seus caminhos e túneis, e esses foram abandonados para o esquecimento.
    Com o passar dos anos, a Fortaleza do Rio Negro foi desativada e abandonada. Com a construção de Manaus, diversos outros usos foram-lhe dada, até que, sobre seu alicerce, foi erguido o prédio da Tesouraria da Fazenda, atual Diretoria da Fazenda Estadual.
    Após dias estudando as diversas plantas dos edifícios que uma vez ergueram-se naquele local, descobri onde precisaria escavar para encontrar a antiga entrada do túnel. Graças à pandemia, driblar a quase nula segurança do prédio da Diretoria foi a etapa mais fácil. Alan, meu único verdadeiro amigo, acompanhou-me até a entrada, ajudando-me a encontrá-la utilizando uma marreta. Depois de escavarmos o chão e encontrarmos o antigo alicerce da Fortaleza, exploramos o subsolo até encontrar o túnel, bloqueado por uma antiga porta cuja madeira já estava podre. Bastou um chute para que caísse. Foi ali que nos despedimos. Minha jornada precisava continuar sem ele, afinal, alguém precisava viver para contar a história.
    -Foi bom te conhecer, Catarina – disse antes de me deixar partir.
    Durante o trajeto, minha única preocupação era com o que aconteceria se algum segurança encontrasse Alan. O julgamento sobre um homem preto que arrombara o chão do prédio da Diretoria da Fazenda com uma marreta seria impassível e rígida, com uma pitada de racismo. 
    Confinada às rochas úmidas, o tempo parecia não passar. Sabia diferenciar apenas os momentos que eu estava cansada o suficiente para as minhas pernas obrigarem-me a parar e os momentos que acordava minimamente descansada para continuar. Aquele era um daqueles momentos. Oh, Deus, como eu desejava uma cama macia.
    Procurei por um lugar o mais seco possível para deitar. Sentei-me e comi uma barra de cereais; peguei meu celular na mochila e liguei-o. Ainda restavam 84% de bateria, além das reservas que trouxe. Havia caminhado por dezessete horas desde a minha última parada; eram duas horas da tarde de um sábado quando programei o despertador para tocar em sete horas. Por conta do medo de acordar e seguir na direção contrária, usei algumas roupas para fazer uma seta indicando a direção que deveria seguir. Antes de adormecer, meu último pensamento foi para Lilian. Cuide dela por mim.
    O tempo entre adormecer e despertar pareceu não existir. Sentia-me ainda mais cansada quando acordei, mas não podia parar. Já era o meu terceiro dia de caminhada, arriscar-me-ia em mais dois, apenas, pois ainda teria comida suficiente para voltar se não encontrasse nada... se eu falhasse. Um dos pensamentos que me assombravam durante aquela jornada era o de seguir um caminho interminável, esgotando tudo o que trouxe e morrendo sozinha, onde ninguém jamais me encontraria.
    Sentei-me, esfregando os olhos e lutando contra o impulso de deitar e dormir por outras seis horas ou mais. Tomei a água que restava em meu cantil e fui até um filete na parede para enchê-lo. Não demorou muito até que eu retomasse minha caminhada. A cada dia que passava, o túnel deixava de ser menos assustador, mas, ainda assim, o mistério caminhava ao meu lado.
    Levou pouco mais de duas horas para que o túnel começasse a mudar; as paredes foram se tornando mais altas e largas, com ainda mais presença de bioluminescência. Distante dali, uma luz rubra brilhava competindo com a azul. Ver aquilo me encheu de esperança novamente.
       Mas não era o que eu pensava. Quanto mais eu me aproximava da luz, mais quente o ambiente ficava. Para meu espanto, um rio de magma fluía há centenas de quilômetros numa fenda larga e longa. Àquela distância, o calor era inofensivo e, a bem da verdade, muito bem vindo.
    Uma ponte larga, também de pedra, de quarenta metros conectava um lado ao outro do túnel, cruzando a fenda. Enquanto atravessava, não conseguia desviar o olhar do magma; mesmo distante era a coisa mais bela que já havia visto. Escorria lentamente em tonalidades de laranja, vermelho e amarelo.
    -Quem ser você? – A pergunta ecoou por toda a fenda, vindo e indo para todas as direções. Olhei ao meu redor, procurando pelo dono daquela voz grossa e penetrante.
    Senti calafrios percorrendo meu corpo e minha adrenalina aumentando; agora, qualquer dor que eu já tivesse uma vez sentido havia indo embora. Eu poderia correr, mas para onde? Poderia gritar, mas para quem? Só me restava uma opção.
     -Sou Catarina Coimbra – respondi apreensiva. Olhei à minha volta, procurando por algum sinal daquela voz. Algum tempo se passou em silêncio. Foram minutos que se resumiram em segundos ou segundos tão longos que pareceram horas?
    Passadas vieram por trás de mim, mas não tive tempo de me virar. Braços grossos e musculosos me envolveram, apertados e rígidos. Pude sentir o cheiro do suor que escorria pelo seu corpo sem banho há dias. Mas também senti um cheiro agridoce, um cheiro de paz e calmaria... Tudo foi ficando tão calmo...

Parte II: Akakor

    O mundo parecia estar em êxtase. Milhares de pássaros cantavam nas centenas de árvores que me rodeavam e bloqueavam o sol. Às vezes um feixe de luz encontrava meus olhos... Tão belo. O ar estava úmido e pegajoso, porém fresco. Um rio fluía em algum lugar, eu podia ouvir suas águas. Mas a escuridão voltou, ela sempre voltava. Fui confinada a mim mesma novamente.
    Eu vi Lilian em algum momento, com aquele sorriso encantador. Mas sombras levaram-na e eu fiquei sozinha novamente. Sabe-se lá quanto tempo depois, despertei novamente, em meio às estrelas. Estava deitada em alguma espécie de maca de couro, com meus braços e pernas atadas por uma corda áspera. Tentei falar, mas apenas grunhi. O cheiro voltou e o mundo girou.
...
    Eles conversavam em um idioma estranho, diferente de qualquer dialeto indígena que eu estudara. Era capaz de reconhecer apenas uma palavra ou outra, mas sabe-se lá se o significado era o mesmo. Todos ali eram altos e pretos, mas alguns tinham os cabelos lisos e os olhos puxados típicos dos indígenas; outros, os olhos redondos e o cabelo afro. Teriam os indígenas acolhidos os escravos fugitivos?
    Haviam me colocado numa espécie de túnica amarela, no mesmo estilo das que eles vestiam. Os nativos que ali estavam usavam laranja, branco ou preto. Presumi que as cores indicavam suas funções ou estatuto naquela sociedade. Três deles guarneciam a retaguarda, enquanto outros cinco falavam com uma mulher vestida de branco defronte uma espécie de porta redonda.
    Estávamos num lugar que tomei por uma praça, toda de pedras cinzentas. Árvores cobriam-na quase por inteira, não era à toa que satélite algum jamais havia encontrado aquilo. Duas piscinas eram divididas pela ponte que levava à porta redonda, a qual tinha bordas carmesins e ficava num paredão rochoso adornado por grossas raízes pesadas.
    Deparei-me com uma pantera cinzenta aproximando-se pela lateral esquerda, sossegada e preguiçosa. Parou ao lado da mulher de branco do mesmo modo que um gatinho de estimação faria. Ela ronronou enquanto a região entre suas orelhas era coçada.
    Não compreendia o que falavam, mas entendi quando minha presença havia sido solicitada. Os guardas me escoltaram até uma índia alta, de pele queimada pelo sol e rosto com tatuagens de sua tribo. Eram tupis. Ela também segurava uma espécie de cajado de madeira com algum cristal amarelado na ponta, afiado o suficiente para servir como arma.
    -Sua língua, português? – ela perguntou, sem muita dificuldade.
    -Sim, eu falo português – utilizei de gestos para tentar ser mais bem compreendida.
    -Homens brancos devem morrer. Você mulher. Você boa. – sua voz era dotada de alguma compaixão, assim como os seus olhos de jabuticaba.
    -Meu nome é Catarina Coimbra.
    -Cata... rina? Catarina.
    -Isso mesmo.
    -Mim Inaiê, guerreira tupi. Encontrar Akakor, como?
    Pensei por alguns instantes em como poderia responder, ela não entenderia muita coisa de qualquer maneira.
    -Procurei por Akakor durante muitos anos. Encontrei o túnel e o segui – ela pareceu não compreender o que era túnel. – A passagem pela qual vim. Caminho.
    -O Caminho Azul – ela o chamou. – Muito antigo. Não mais usado há eras. Por que veio? Aqui deve permanecer oculto.
    E permanecerá, para todo o sempre. Havia visto muito pouco daquilo, mas parecia ser uma fortaleza inexpugnável. As poucas provas e evidencias que encontrei haviam sido destruídas, ninguém mais deveria saber daquilo. Alan sabe.
    -Vim pelos seus deuses.
    -Deuses?
    -Tupã, Jaci, Guaraci, Ceuci e Jurupari.
    Os olhos de Inaiê arregalaram-se e sua boca abriu involuntariamente. Ela suspirou. Disse algo para os guardas e virou-se, entrando no completo breu além da porta. Com um empurrão, entendi que deveria segui-la. 
    Além do breu, após uma escadaria de poucos degraus, um salão oval era iluminado por dezenas de archotes presos às paredes por suportes de metal esculpidos na forma de caveiras. Todo o salão era esculpido e ornamentado com pedras preciosas; o chão era feito de diferentes rochas coloridas, formando um símbolo que remetia ao sol. Nas paredes, panteras com olhos de rubis e araras com olhos de granada vigiavam perpetuamente. Havia sete outras aberturas além da qual viemos, todas levando à escuridão. Seguimos pela central.
    Eu ainda estava extasiada com tudo aquilo, sentindo-me deslocada, como se estivesse vivendo um dos mais utópicos sonhos. E realmente estava. Uma série de galerias repletas de curvas e bifurcações levou-nos até um grande salão iluminado por aberturas minúsculas no teto, como uma espécie de iluminação encanada. Havia uma fonte no centro e estátuas colossais ao seu redor, todas em homenagem aos deuses nativos... e havia crianças escondidas atrás das estátuas, todas nuas. Algumas permaneceram dentro da fonte, encarando-me. Provavelmente, nunca haviam visto uma pessoa branca. Mais pessoas surgiram, todos eles índios e negros, e seus olhos pesavam sobre mim. Vestiam-se com panos maltrapilhos, peles de animais ou folhagens.
    Vi muito mais de Akakor enquanto era escoltada; passei por uma espécie de biblioteca, onde todos os livros eram feitos de folhas secas ou entalhados em pedras ou madeira. Três templos de adoração haviam sido feitos com estatuas para seus deuses: um para o sol, um para a lua e outro para o trovão. Os refeitórios dali eram grandes o suficiente para que milhares de pessoas pudessem comer; alguns comiam naquele exato momento, vi queijos, pães, pastas verdes e amareladas, caldos e legumes, além de uma bebida azulada. Tinham até mesmo um tipo de teatro, onde um palco circular erguia-se em meio às arquibancadas. Não importava o lugar, todos os olhos fitavam-me; eram olhos de julgamento e olhos amedrontados.
    Paramos defronte uma porta guarnecida por dois guardas de laranja, ambos possuindo lanças maiores que os mesmos. Inaiê disse algo em sua língua; eles retrucaram, afobados, mas, ainda assim, abriram a porta. A partir dali, apenas a guerreira tupi prosseguiu comigo. Após atravessarmos, trancaram a porta atrás de nós.
    Pilares com cerca de vinte metros de altura suportavam um teto em forma de cúpula, de onde uma série de lustres pendurava-se. O chão era de mármore e, apesar de toda a sujeira que havia visto no resto daquela cidade perdida, permanecia limpo. Estátuas de animais e petróglifos que representavam batalhas e caças deixavam o ambiente ainda mais sinistro. Petróglifos? Esse lugar deve ser mais antigo do que parece.
    O ar ali tinha um cheiro doce e limpo, parado. Senti um frio na barriga e minhas pernas tremiam; mas não era hora para covardia. Do outro lado do salão, uma porta de madeira quase tão alta quanto os pilares parecia ser o meu destino final. Atrás dela estava o que eu procurava há tanto tempo, eu podia sentir. Pareciam ser toneladas de madeira escura e clara, perguntava-me como Inaiê a abriria. Ela soprou e a madeira rangeu.
    Uma corrente de vento quente e úmida veio de lá, junto de uma névoa branca e rala. Tentava controlar minhas pernas, mas de nada adiantava, apenas tremia. Sentia vontade de correr, de voltar para casa e desistir de tudo aquilo. Uma voz rugiu implacável, porém serena. Estranhamente, senti-me bem novamente.
    Soou uma melodia, convidando-me para adentrar.

Parte III: A Lenda Vive

    O sol brilhava acima de tudo, pequeno e alaranjado. Não o sol que eu conhecia, mas o sol deles. Árvores cresciam ali, coloridas e vívidas, abrigando uma centena de pássaros e gerando os mais variados frutos. Também havia animais, tal como peixes numa lagoa, macacos nos galhos das árvores e diferentes espécies de felinos na grama. No centro de tudo, logo abaixo do sol, um grande altar de rochas negras erguia-se de forma majestosa. Era lá onde eles estavam, divinos.
    Não era difícil distingui-los: o grandalhão no centro era Tupã, a bela mulher com uma lua na testa era Jaci, Guaraci tinha um sol tatuado no peito, Ceuci era idosa e encarquilhada, mas ainda bela. Jurupari era mais jovem do que Tupã, e ainda mais belo. Anhangá era conhecido pela caveira tatuada em todo o seu rosto. Sumé não passava de uma criança, carregando um arco majestoso cravejado com pedras e ornamentado com penas coloridas, e sua aljava. O Yorixiriamori era grande como um dragão, feito de madeira e com folhas no lugar das penas, porém vivo. Silvou ao nos ver entrar.
    A extensão da floresta ainda era um mistério, apenas a rocha que cobria tudo como um domo gigante era vista. Viviam em baixo da terra em sua própria floresta, com seu próprio sol e suas próprias regras. Não era a toa que se chamavam de deuses. Vê-los me encheu de esperança, esperança de que lutariam ao lado dos bons e oprimidos por um mundo novo, que, diferente do que fizeram pelo seu velho povo, não desistiriam.
    Inaiê ajoelhou-se ante eles e começaram uma conversa na língua desconhecida. Era notável a rigidez na voz de Tupã, a serenidade na de Jaci, a sabedoria e calmaria na de Ceuci e a curiosidade na de Sumé. Tupã aproximou-se da guerreira, descendo do altar por uma escadaria. Estendeu-lhe a mão e a ajudou a se levantar. Ela disse-lhe uma última coisa e eu reconheci apenas a palavra “português”.
    -Você é uma deles? – perguntou-me Tupã, com o trovão na voz. – Daqueles que vieram para sangrar meu povo e reduzir nossas florestas ao pó?
    Antes de responder, ajoelhei-me. Era esperto demonstrar sua inferioridade perante uma divindade. Ele aproximou-se de mim, parando à minha frente e apoiando-se em uma lança longa.
    -Eu descendo deles, tenho o sangue deles, mas eu juro que luto contra tudo o que eles representam. Eu luto por um mundo melhor, Senhor.
    -Você é uma mulher, tem a bondade e a pureza no coração; os homens, não. Foram corrompidos pela ganância de poder ao longo do tempo. Mas, ainda assim, você é branca, da cor daqueles que nos oprimiram.
    -A cor de nada importa, Tupã. – interrompeu Ceuci, ainda sobre o altar. – Olhe através do coração dela, além dos olhos, assim como eu fiz, e verá.
    Atrevi-me a levantar a cabeça e encarar Tupã, fitando seus olhos. Ele fitou-me de volta e, logo, seus olhos encheram-se de lágrimas. Ele ofereceu-me a mão e ajudou-me a levantar. Depois, levou-me até o altar, onde todas as divindades me encaravam, curiosas.
    -Deve estar se perguntando como falamos sua língua. – Ceuci adivinhou. – Os deuses falam todas as línguas, querida.
    -Como nos descobriu? – perguntou Jurupari.
    -Encontrei manuscritos antigos, mapas, relatos e uma série de documentos sobre expedições. Dois deles me deram a certeza do que encontrar aqui, especificamente: uma carta de Tatunca Nara e uma de um pajé chamado Kauê.
    Os olhos deles demonstraram sua surpresa, alguns até mesmo se encheram de lágrimas. Apenas Anhangá mantinha sua face longe das expressões, ilegível.
    -Kauê é um nome comum, mas nós sabemos de quem você fala – disse Tupã, agora sem o trovão na voz. – Foi o indígena que nos ajudou a trazer sobreviventes para este lugar e a nos escondermos. Foi uma das melhores pessoas que já conheci e se sacrificou por nós.
    -Seu povo o matou. – As primeiras palavras de Sumé. Ficariam para sempre gravadas em minha mente. Apesar de não ser culpada em nada daquilo, eu descendia daqueles “monstros” e me sentia mal por tudo o que fizeram ao mundo.
    -Ela tem o sangue deles, mas não pertence àquele povo, Sumé. – a voz de Jaci era calma e doce, tão bela quanto ela própria. – Você parece estar faminta e cansada. Aceita um pêssego? – pegou um em uma cesta de juta próxima e ofereceu-me.
    -Obrigada.
    Minhas pernas ainda tremiam e meu coração parecia querer sair pela boca. Com dificuldade, dei a primeira mordida; o sumo escorreu pelos meus lábios, doce e suculento. Uma fruta nunca havia sido tão bem-vinda. Enquanto deliciava-me, ouvi algo se aproximando por trás, distante, mas produzindo um grande barulho. Ao virar-me, deixei a fruta cair de minha mão e, por um instante, meu coração parou de bater.
    Seu corpo era formado por faixas de escamas e faixas de chamas, aparentava ter mais de vinte metros de comprimento e sua língua era tão longa quanto uma cobra normal. Seus olhos também queimavam. Ele foi diminuindo o ritmo que deslizava, até parar por completo em frente ao altar. O Boitatá. As chamas de seus olhos ardiam em julgamento.
    -Presumo que as cartas que encontrara não mencionaram estas criaturas. – disse Tupã, cuja presunção estava mais do que correta.
    -“Estas criaturas”, você disse. O que mais vive aqui?
    -O “que” não, “quem”. – corrigiu Ceuci. – Yorixiriamori, chame-os, sim?
    O pássaro levantou e, com um bater de asas turbulento e pesado, lançou-se ao ar, deixando para trás uma grande nuvem de poeira. Voou e planou alto, mas não muito próximo do pequeno sol interior. Enquanto planava sobre nós em círculos, cantou um canto egrégio, doce o suficiente para acalmar os nervos do mundo. Oh, se todos pudessem ouvir aquilo...
    Da lagoa, a mais bela mulher que já vi em minha vida emergiu. Seus cabelos eram loiros e cacheados, longos; seus olhos eram azuis como safiras, seu rosto repleto de sardas e seus seios, desnudos. Não foi necessário ver sua calda para reconhecer que era Iara, A Mãe D’água. Ao seu lado, o Boto-cor-de-rosa exibiu-se magnífico. Das árvores, outras dois mitos saíram: Saci e Curupira eram moleques exatamente como a descrição feita pelo folclore, o primeiro com seu gorro avermelhado e uma perna só e o outro com seus pés virados para trás, a pele esverdeada e os cabelos sendo labaredas. Atrás deles, mais chamas saíram, dessa vez sobre quatro patas.
    Aqueles que podiam subiram ao altar, curiosos em relação a mim, assim como todos os que me viam pela primeira vez. O Yorixiriamori cessou seu vôo e aninhou-se novamente.
    -É bom ver outra pessoa de minha cor. – disse Iara, da lagoa. Não soube como respondê-la, então apenas sorri.
    Eu estava ofegante e meu coração ainda parecia querer sair pela boca. Meus pés doíam ainda mais e meu corpo clamava por um momento de descanso, mas nada daquilo importava mais. Eu os havia encontrado. Ali, eu sentia estar a salvo...
    -Ainda não acredito que vocês existem. – admiti.
    -Isso era comum, tempos atrás. Mas, agora, poucas pessoas nos vêem e, os que nascem aqui, sabem de nossa existência. – explicou Tupã.
    -Por que se refugiaram aqui? Vocês são deuses, podem aniquilar quem quer que os ameace.
     -Oh, querida, não somos mais tão poderosos assim. – contou Ceuci, em tom de lamento. – Nosso poder vem da fé que nosso povo tem em nós. Quando os brancos chegaram nestas terras, passaram os nativos na espada e, à medida que a fé deles morria, a nossa centelha de poder também se apagava.
    -Por que não impediram os colonizadores? – arrisquei-me a perguntar.
    -Já era tarde quando descobrimos – explicou Tupã. – Não somos onipresentes, como muitos pensam. Conseguimos salvar poucos e, com eles, fugimos para esta cidade abandonada. 
    -Akakor já existia quando vocês vieram para cá?
    -Akakor existe há milênios, desde o tempo dos primeiros povos.
    Houve um momento de silêncio, quebrado por Ceuci:
    -Diga-nos, filha, qual o motivo de ter nos procurado durante tanto tempo, por ter se arriscado aos perigos da jornada até aqui?
    -Sempre fui intrigada por civilizações perdidas, Akakor especialmente. Mas tudo ficou ainda mais intenso quando descobri os relatos sobre vocês. Eu disse para mim mesma: “eles são deuses, as criaturas mais poderosas que já existiram e existirão. Eles podem mudar o mundo, salvá-lo.”. Foi por isso que vim, para implorar por ajuda.
    -O que acontece lá fora? – perguntou-me Jaci, preocupada. – Quando eu olho de cima, da lua, tudo parece tão tranquilo e calmo, vejo mais luzes a cada dia.
    -Somos pequenos em comparação ao universo, mas igualmente problemáticos. O mundo está um caos, Jaci. Há pessoas boas, muitas, mas também existem pessoas tão egocêntricas e egoístas que são capazes de acabar com seu próprio lar para conquistar o poder, e, por mais irônico que seja, são os mais poderosos. A maioria luta contra eles, mas essa minoria favorecida se fortalece ainda mais a cada dia.
    -Nosso povo, ele sobreviveu? – Ceuci parecia temer a resposta.
    -Sim, Ceuci, sobreviveram. Resistem contra o sofrimento, racismo e segregação. Toda a sociedade foi fundamentada nisso, mas, agora, lutamos para erradicar qualquer preconceito. Muitos ainda sofrem por serem apenas quem são, por amarem quem amam ou por nascerem de uma cor diferente. 
    -Você esperava que matássemos todos eles? – pronunciou-se Anhangá.
    -Alguns realmente merecem, mas não apenas por isso. Os problemas internos da raça humana não são os maiores problemas. Estamos acabando com o planeta, derrubando as florestas, poluindo os oceanos e rios e massacrando os animais até mesmo por prazer. Por mais que milhões lutem contra isso, nossa voz não passa de... gritos ou sussurros. Neste exato momento, estamos enfrentando uma pandemia viral. A própria natureza esta tentando se livrar de nós.
    -MEUS RIOS? – gritou Iara, irada. – Não, isso não pode ficar assim. Matarei todos os humanos que se atrevem a sujar minhas águas.
    -Você despreza sua própria espécie – notou Ceuci, e ela estava certa. – O que conclui disso?
    Não hesitei em responder. Perguntei-me aquela mesma pergunta várias vezes durante a vida.
    -Que para nossa espécie prosperar, alguns devem morrer. Precisamos de uma purificação.
    -O que te faz pensar que somos poderosos para isso? – questionou Tupã.
    Foi necessário um momento para que pensasse na melhor resposta. Quando cheguei ali, não tinha noção de que deuses pudessem perder seus poderes.
    -Vocês possuem um sol interno, isso já deve bastar. Quando se mostrarem, o mundo saberá quem vocês são e terão fé novamente, deixando-os mais poderosos do que jamais foram.
    Os deuses encararam-se uns aos outros; o Yorixiriamori silvou e o Boitatá rugiu, cuspindo chamas. Até o vento pareceu mudar, tornando-se mais intenso e violento. Inaiê permanecia ali, imaculada, ouvindo tudo sem nada compreender. 
    -Eu digo para lutarmos. – Sumé, apesar de ser um curumim, tomou a iniciativa. – Como a mulher branca disse, ficaremos mais fortes quando tiverem fé em nós.
    -Eles têm outro deus, outra fé. – contrapôs Jurupari.
    -Um deus que foi imposto sobre nós – rebateu Anhangá. – Devolveremos na mesma maneira.
    -Sinto que não estaremos sozinhos nessa luta – disse Jaci, calma como sempre. – Existem mais pessoas como você, não é, Catarina? Elas lutarão conosco?
    -Há muitos que já lutam e sangram pela esperança de um mundo melhor.
    -O que devemos fazer, Catarina Coimbra? – perguntou Tupã.
    -Você olhou através de meu coração e olhos e viu que podia confiar em mim. Pode fazer o mesmo em minha mente?
     Ele aproximou-se de mim e apoiou o dedo indicador em minha testa. Fechou os olhos. O espanto e o desgosto de suas expressões refletiram a podridão do mundo. O hálito putrefato dos humanos, o peso de suas ações e a angústia causada ao mundo, ele absorveu tudo aquilo em segundos. Quando abriu os olhos novamente, tinha trovões neles.
    -Vocês matam uns aos outros por poder, matam os animais e exploram a natureza por luxo e prazer. Superioridade e egocentrismo, prepotência. Fome. Governos fascistas, autoritários e ditatoriais. Preconceitos, racismo, homofobia... Eles só querem amar. Extinção, exploração, desmatamento, aquecimento global e agrotóxicos... Vocês exploram o solo, o abatem e o envenenam. OS RIOS. ATÉ MESMO OS RIOS VOCÊS POLUÍRAM. OS RIOS QUE CRIAMOS PARA LHES DAR VIDA E SUSTENTO. – ele respirou fundo, contendo seu surto. – Sua espécie está doente. Vocês devem ser purificados.
    -PURIFICADOS! – soaram os deuses em uníssono.

Parte IV: A Ascensão
 

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⏰ Última atualização: Jul 08, 2020 ⏰

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