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 PRESENTE

  Peguei a xícara banhada de chocolate quente das mãos delicadas da minha namorada. Ela logo me lançou seu sorriso costumeiro, fazendo suas bochechas, cheias de sardas, darem forma a seu rosto. Em outro momento eu também abriria o meu, mas não tinha o ânimo necessário para que o fizesse.

- Trouxe pra você. Enchi até a boca do jeito que você gosta - os cantos da boca se abaixando até que desfizesse o sorriso - daqui a pouco meu turno acaba e a gente pode conversar.

  Tentei fazer meus lábios emitirem qualquer frase que me fizesse parecer menos idiota, mas o máximo que consegui foi um pequeno sorriso fechado. Senti uma fisgada no peito mas mantive focada apenas em saborear seu chocolate. Era inegavelmente divino. Poderia me permitir fechar os olhos e apenas saborear a bebida mas senti que aquele não era o momento certo para tal.
  Ela me fitou cabisbaixa ajeitando o avental e girou o tornozelo até que estivesse totalmente de costas pra mim, indo rumo à cozinha. Suas curvas continuavam belas como a 4 anos atrás, seu andar meio desajeitado também, seu cabelo, brilhante como bronze, ainda chamava atenção mesmo debaixo da touquinha branca.

  Dou mais um gole mas só sinto o gosto amargo do choro preso na garganta. Tento até me distrair olhando pelas gigantescas janelas da cafeteria, esperando que algo me tirasse da mente o que deveria fazer.
  Apesar dela trabalhar aqui a mais de um ano, não é um local que eu goste de visitar. Pela primeira vez, percebo que aqui, no segundo andar da cafeteria, não consigo ver os os prédios do centro da cidade, como costumava achar, e na verdade, como é noite, percebo que não vejo quase nada além do que a luz dos postes me permite, bancos vazios de pontos de ônibus.

  Enfio meus dedos no emaranhado de fios curtos do meu cabelo enquanto faço um gesto de negativa com a cabeça. É muito fácil me tirar de órbita, não é muito difícil fazer com que eu pense em outra coisa até porque eu passei praticamente uma semana ignorando-a e arranjando qualquer desculpa esfarrapada, porque qualquer, qualquer coisa, me deixa mais entretida do que trocar mensagens com ela e lembrar do que tenho que fazer.
  Devia me focar, me concentrar no que preciso dizer, mas agora não consigo me sentir nem ao menos triste.
  Eu sou uma idiota. Eu vou acabar com ela com um punhado de palavras decoradas. Vou fazê-la chorar por dias mas mesmo assim eu consigo passar horas pensando em qualquer outra coisa sem ser isso, em qualquer outra coisa sem ser ela.

  Me sinto frustrada.

  Mas algo me fisga a atenção, uma dentre as inúmeras janelas das casas que enfeitam a rua abaixo de mim se acende. Ainda está escuro demais pra que consiga deduzir a forma da estrutura do local mas a luz é forte o bastante pra mostrar cada detalhe do quarto. Me sinto uma intrusa, mas me permito observar um pouco o que consigo enxergar. Vejo tinta de todas as cores, jogadas desajeitas sobre um carpete preto, junto a vários papéis amassados.

  Consigo sentir um aconchego familiar na imagem a frente que é abruptamente tirado de mim ao ver alguém se aproximando da janela. No minuto que vi a luz daquela janela se acender eu devia ter focado meus olhos em outro lugar, não sou burra, eu sei exatamente quem é a dona daquela janela, daquela casa amarela, daquele quarto. Facilmente consigo identificar as mãos cujos dedos enroscam num punhado de papel, juntando um por um até formar uma grande bola de papel amassado. Conheço de cor seus braços e o moletom que molda seu corpo. Consigo ver com clareza seu cabelo preso num rabo de cabelo muito mal feito e consigo decifrar exatamente qual é sua feição, sei exatamente que prende o lábio inferior sobre o dente e que olha com o cenho franzido a bagunça a sua frente como se escolher entre usar a tinta amarela ou a preta fosse uma decisão árdua. Ela não está nem um pouco diferente. Respiro fundo. Seus olhos percorrem uma tela da qual não consigo enxergar muito bem. Ela senta e não demora muito pra pegar um pincel, tiro meus olhos da janela mas posso ter certeza que só agora lhe ocorreria de levantar as mangas do casaco, esquecendo -se de tirar o pincel das mão, o que acarretaria em mais uma mancha no tecido do moletom, que provavelmente ela perceberia apenas horas depois. Eu poderia recitar cada detalhe pois os decorei como decorará uma tabuada a 10 anos atrás.

Todas as canções são sobre ela ⚢  Onde histórias criam vida. Descubra agora