Capítulo 13

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Dois dias depois do medo implantar em minha cabeça a doentia vontade de me atirar ao sol e correr para a Brie, ela me ligou

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Dois dias depois do medo implantar em minha cabeça a doentia vontade de me atirar ao sol e correr para a Brie, ela me ligou. Estranhamente, Nicholas tem me deixado falar sem perguntar nada antes, sem atender e recitar seus versos sobre Demônios da Tasmânia de novo e de novo - a paranoia sempre unindo morte e sangue ao nome invasivo do tal demônio.

Brie estava estranhamente empolgada ao telefone, eu conseguia ouvir o bater acelerado do seu coração impaciente, o morder de unhas, o farfalhar das folhas muito próximas à sua janela. Queria poder vê-la no verão, o sol lambendo seu rosto, a paz me abandonando, a vontade de derramar-me sobre seus lábios doces rastejando em meu peito. Ela deve estar linda sem as galochas e as meias e todos os casacos sobre seus ombros. Ela deve ser linda em meio às árvores frondosas, vestida de seda e estampas e todas as cores que existirem nesse mundo pequenino.

- Eu sei que não deveria dizer sobre vocês a ninguém - era a quarta ou quinta vez que repetia essa mesma frase, sem trocar uma única palavra de lugar. - Mas... Sabe? Ele é meu irmão e... Ace? Você está ouvindo?

- Estou... estou - e estava, mas o tom como ela fala me cativa mais que as palavras, acho que me perdi um pouco no caminho. Ela falava sobre como foi contar à Billie, seu irmão, sobre Nicholas e eu sermos vampiros e Kai ser uma outra coisa.

Sentei-me sobre a cama de Nicholas, o cheiro de sua colônia de rosas deixando o inverno do Chile um pouco menos invernal.

- Ele me chamou de idiota - ela sorriu, o tipo de sorriso que faz com que rostos virem-se para trás. - Sei que a situação não é das melhores. Temos um toque de recolher, um demônio a solta na cidade e temos o Kai, que é um mistério maior que as mortes que temos, mas...

Sua voz ia diminuindo, como as teclas contínuas de um piano.

- Mas? - acho que, para humanos, sem sentidos aguçados, todas as frases pausadas em "mas" soam como marteladas de incerteza. Lembro de ser assim quando não tinha a "doença vampiríca" em minhas veias. Agora, cada "mas" é um "mas" diferente. Esse, por exemplo, é um "mas" que significa "não sei como terminar essa frase mas preciso de uma conexão com a próxima". Ou talvez isso seja apenas eu tentando ler a Brie, tentando montar um arquivo com subpastas onde descrevo a cadência exata de cada uma das palavras que sai por aquela boca.

- Billie não acreditou na história de vampiros em Minnesota, acreditou menos ainda na história de Kai ser um demônio da Tasmânia, mas ele ainda acha que há algo errado - sua voz baixou para o tom assustado de dois dias atrás.

Esse nome, Kai, nunca soa aos para os meus ouvidos como algo comum ou inocente.

- Tenha cuidado...

- É, eu sei - ela cortou todo o meu discurso de ódio. - Kai não é um cara ruim, ele só é péssimo em socializar e tem uns amigos que ligam e falam como se fossem gangsters. Mas ele sequer saiu de casa.

Do lado na linha onde Brie está, alguém abriu e fechou uma porta. Brie assentiu com sussurros abafados e a voz que deveria ser de seu pai lhe fez uma pergunta.

- Só estamos acertando detalhes no meu pagamento - disse Brie.

- Você não pode continuar indo lá, é perigoso - disse a voz grave e meio embriagada.

- Posso ligar mais tarde, se quiser - sussurrei.

- Me desculpe, eu ligo à noite, pode ser?

- Aqui já é noite - informei, e ela sorriu para mim e concordou com o pai ao mesmo tempo. E então, se foi.

O silêncio do outro lado da linha me deixou atônito. A falta da Brie não é a pior coisa do mundo. Lembro-me bem de seu rosto, do seu toque, do seu cheiro, e isso é o bastante para sanar minhas saudades. No entanto, o silêncio cada dia mais presente anda abrindo sulcos profundos em minhas memórias - e essa é a pior coisa do mundo.

Lembro quando morava na Inglaterra, quando era pequeno e mamãe me levava à praias e todos usavam roupas de banho cômicas. Mas não lembro bem o rosto dela, não lembro das curvas onde seus sorrisos acabavam, onde a seriedade começava assim que meu pai lhe dirigia palavras cheias de mau agouro.

O rosto de meu pai eu já não lembro nada. As vezes, acho que o vejo em mim - essa é a pior parte. Seus olhos, seu cabelo, os nós róseos de seus dedos, a curva de sua boca quando a raiva era maior que a costumeira.

Nicholas adentrou o quarto batendo palmas. Ele cheira a frango frito e açúcar derretido.

- Às vezes você se perde demais em si mesmo, Boneco de Neve - ele jogou o avental sujo sobre a cadeira na escrivaninha e sentou-se ao mesmo tempo em que soltava os botões mais altos da camisa. - Você tá preocupado com a Brie, ou preocupado em esquecer a Brie?

- Os dois? Porque está lendo minha mente outra vez?

- Porque até um surdo pode ouvir essas suas incertezas todas desabando e desabando... Como as Calotas Polares - ele fez um gesto de desgosto em direção à janela. Daqui, dá pra ver o paredão branco e cinza que torna a Cordilheira dos Andes. Uma coisa não tinha nada a ver com a outra, mas o gelo diminui em ambos os lados.

Baixei a cabeça. Nicholas tem sempre razão. Eu penso demais e me perco demais em cada um desses pensamentos. E um me faz esquecer o outro. Lembrar a Brie me faz esquecer que há um medo maior que esquecê-la: perdê-la seria ainda pior, perdê-la para sempre, para um demônio, perdê-la para um morte fácil e injusta.

- Brie ficará bem - Nick segurou meu ombro e o chacoalhou. - Liguei para ela e dei todas as instruções para uma situação que possivelmente envolve Lobisomens. Se ela ficar em casa, tudo dará certo. Eles não atacam cidades, não mais.

- Não mais? - Há sempre um mal em cada calmaria que ele tenta lançar em minha baía.

- Longa história. Agora eu preciso que você saia do meu quarto e vá procurar algo pra fazer - Nick me empurrou quarto a fora, fechando a porta atrás de mim e ainda continuou gritando seus conselhos idiotas, mas precisos, lá dentro. - Vai correr por aí, ou sei lá... Caçar? Procure um clube do livro, um teatro, qualquer coisa que te faça esquecer International Falls e Minnesota e tudo isso.

E lá fui eu, pobre Ace, não-dormir, com a cabeça mais cheia de perguntas que respostas. A única certeza que tenho é a que já tinha: sou o vampiro mais inútil nessa Terra inteira.

Verão Taciturno (livro dois)Onde histórias criam vida. Descubra agora