Abro lentamente os meus olhos. Sinto enjoo e tontura. O ar frio invade os meus pulmões, sinto cheiro de fumaça. Não tenho certeza se consigo falar, ou mesmo... Respirar. Uso um vestido um pouco amarrotado e sujo. As minhas mãos são ásperas e brancas como a neve. A sala é escura e o chão acizentado. Vejo pedaços de papel rasgados e desenhos pelo chão.
Que é isso? Não consigo lembrar de nada, falta-me o sentido. Tento compreender as horas perdidas.
- Me chamo Dante. - Ouço uma voz macia.
- Perdão? - Me viro em direção à voz. Um gato preto se aproxima de mim. Tão magro e tão esquisito, que faria sozinho nesta sala escura?
- Sou Dante - Responde o gato.
- NÃO!! - Me levanto de súbito e tento correr para longe. Ainda me sinto fraca e mal consigo me manter de pé.
- Sente medo? - O gato chegava mais perto.
- N-Não... Não, mas... Como podes falar? Eu estou sonhando, tenho que ir pra reun... - Piso em falso, minhas pernas cambaleam e eu caio. Nem a minha queda quebrou o silêncio da sala.
- Se não sentes medo, ousa tocar-me. Me chamo Dante. - Ronrona e sobe no meu colo.
- Eu não sei quem... Onde eu?... Por que não consigo sen-sent?... - Aliso o pelo suave do gato. Sinto lágrimas quentes escorrerem pelas minhas bochechas e balbucio palavras sem significado.
- Não percebe, querida? Estás morta... Dê uma olhada em tua pele... Viu? Branca como algodão. Não notou que não sente dor? Que está fria como pedra? Eu sou teu anfitrião. Sou Dante. - Parece se orgulhar de seu posto. Apesar de tentar me consolar, creio que não aprecie sentimentos humanos. - Choras porque é apenas uma resposta imediata de teu corpo... Com o tempo, não sentirás nada, e este será teu mais triunfante alívio.
Olho para o meu corpo. Sim, estou petrificada. Mas não tinha notado aquelas correntes. Uma corrente metálica com uma grande bola de ferro presa em minha canela. Também duas correntes em volta da minha cintura. O gato pula do meu colo e desaparece. Sinto-me fraca. Respiro fundo e desmaio no chão frio.
Poderia ter se passado muitos minutos ou muitos dias, mas finalmente desperto. É difícil andar arrastando minhas correntes, são pesadas e tenho medo.
Deu-me na veneta vagar por aquela imensa sala. Os pedaços de papel são como cartas, ou como um diário. É impossível decifrar o significado daquelas palavras, todas desconexas e ilegíveis.
Talvez haja mais de uma sala, penso se estou realmente sozinha. Há uma porta mais adiante. De longe parece pequena, mas quanto mais me aproximo, mais ela cresce. Parece feita de madeira, há muitos desenhos de planetas e seres fantásticos. Mas nada têm significado. Enquanto me esforço para abri-la, percebo que Dante voltara. Seus olhos verdes são como cacos de vidro.
-Não fui muito afável com a senhorita -Ele lambe suas patas.
-Preciso saber... Me diz, gatinho... Quem sou eu? Por que me mantém aqui? - Faço esforço para aceitar que falo não com um agradável anfitrião, mas com um cadavérico gato preto.
-Quem tu és?
De fato, não lembro nem meu nome, nem de onde vinha e nem o que eu desejava. Mas eu sei as coisas. Eu sei que eu teria de ter um nome, que eu vim por uma causa e que gatos não falam. A minha única certeza, a minha única convicção, é de que eu não estou morta. Que nada do que estou vivendo é natural e de que preciso voltar... Pra casa.
-Foi uma moça viva um dia, com um coração pulsante e os lábios vermelhos e vivos... - Fez uma pausa, como se soubesse que suas palavras me afetavam - E que viveu, que conheceu as montanhas e os mares e talvez o amor... Talvez tenha morrido ontem, talvez a muito tempo atrás... De que importa saber disso? Já não vive...
-Sabes mais das coisas do que eu... Qual o meu nome? Sabe como eu posso voltar? - Questiono quase aos berros.
-Se eu pronunciar teu nome em voz alta, menina, tu vais embora de vez. Guardo todos os nomes de todos os seres comigo. Não posso deixar-te ir... Precisa resolver as questões pendentes em vida. Se o fizeres com êxito, digo teu nome e irás para o céu em um instante. Meu nome é Dant-
-Se é o que precisa ser feito, assim será. O que eu mais quero, gatinho, é soltar essas correntes... - O interrompo, mais animada com a ideia - Mas eu não vou para o céu. Isso não têm significado. Vou voltar para a terra.
-A admiro porque és perseverante. Sonha o quanto quiser, mas as coisas são como são. Te darei um nome provisório... Apenas porque me és adorável. Te chamo de Isaura.
Tudo é estranho e novo para mim. Ainda me sinto completamente entorpecida e perdida, mas descobrir quem eu sou me mantém sã. Sinto conforto nas palavras de Dante, mas o medo me têm como refém. Hei de ser perspicaz e voltar ao mundo que conhecia... Mas por ora, meu nome é Isaura.
VOCÊ ESTÁ LENDO
O Ponto das Almas Perdidas
SpiritualUma história sobre a morte e além. Uma menina acorda de repente sem nome, sem memórias... E sem vida. Junto com o empático gato preto Dante, a menina deverá resolver suas questões pendentes em vida, antes que seu corpo físico ceda e sua alma fique...