"Amor, puro fantasma
Que os passeia de leve, assim a cobra
Se imprime na lembrança de seu
Trilho".
Carlos Drummond de Andrade (Destruição)
Em certo dia úmido de janeiro, o pôr do sol naquele fim de tarde, teimava em esconder-se por detrás das densas nuvens acinzentadas, prestes a presentear-nos com a mais torrencial chuva. As lufadas de vento espalhavam os papéis da mesa do escritório de um belo homem de nome Paulo.
A noite chegara mais cedo.
À medida que Paulo juntava seus documentos e papeladas, o forte vento continuava insistentemente a derrubá-los, foi quando então, ao perceber esta silenciosa briga, o mesmo desistiu e jogou-os amontoados em cima de uma pequena escrivaninha ao lado de um livro que há meses não lia. Havia parado no final do enredo, até que o tempo se tornou escasso para estas distrações. Pegou o livro e abriu-o, depois de tempos. Automaticamente relembrou de toda a história e viu-se envolto novamente por aquela impecável narrativa.
A cena a qual Paulo retomara em sua leitura, narrava uma fria perseguição de um marido irado, atrás do covarde amante de sua esposa.
O tal marido, tomado pela raiva, seguia correndo, já ofegante, pelas ruas desertas e becos úmidos daquela cidade até o endereço do amante que, sentado no aconchego de seu escritório, em sua confortável poltrona de frente para a antiga lareira da casa, lia, por sua vez, um romance qualquer a fim de aliviar-se de mais um cansativo dia de trabalho.
Pensava então o amante, entre os devaneios da leitura e sua realidade, como se tornaria páreo para o corpulento e agressivo inimigo; agora possesso pela recente descoberta de infidelidade por parte da esposa. Isto não poderia ter acontecido. Ele não deveria ter levado esta paixão adiante. Poderia pagar um alto preço por ter se afogado no mar viciante que era aquela mulher.
Mais cedo ou mais tarde o homem traído chegaria a seu encalço e o que este seria capaz de fazer era um aflitivo mistério. O amante estava em perigo e não conseguia controlar sua apreensão tamanho os riscos aos quais havia se submetido. Maldita paixão que o enfeitiçara. Seu coração batia inevitavelmente alarmado.
Porém, ele não pretendia morrer assim, covardemente, de forma tão humilhante. Ele não seria o outro, o fraco idiota. Determinara-se em lutar pela própria vida e não mediria seus atos ou consequências. Se havia começado com tudo isto, seria ele a dar um fim.
O amante despertou de seus devaneios após ouvir um ruído que o deixou em alerta. Poderia ser apenas seu gato andando pela casa ou certo alguém sorrateiro procurando por uma oportunidade para findar, quiçá, tenebrosos planos... Os planos que ele tanto temia. Sua morte.
Paulo, em sua leitura, estava imerso nos sentimentos daquele personagem que transbordava medo, aflição e ânsias. Cada linha o agarrava e o puxava enredo adentro, tirando-lhe o fôlego e agitando-lhe o coração impiedosamente.
Aquela aflição parecia bater à sua porta de forma quase palpável e Paulo podia sentir seu escritório moldar-se em densidão em uma fração de segundos. Tudo ficou estranhamente intrigante, real. As luzes tremeluziram, apagando em seguida e algo aproximava-se de Paulo no silêncio daquela noite. Ele sentiu-se apreensivo, sem dar-se conta a sua volta e, impensadamente, apertou o livro em suas mãos tensas a medida que procurava regular sua respiração pesada naquele escuro escritório.
- Mas que droga. - Murmurou para consigo esticando-se para acender o abajur ao lado.
O marido traído aproximava-se perigosamente nas penumbras daquela noite.
O gato de estimação pulou ágil para o colo de Paulo em busca de abrigo e este logo o acariciou franzindo os cenhos, pensativo. Perdeu-se por instantes em pensamentos enevoados e voltou sua atenção para as páginas daquele suspense em suas mãos:
...Ou alguém sorrateiro procurando por uma oportunidade para findar, quiçá, tenebrosos planos. Tais linhas do enredo ecoavam e pairavam por sobre aquele sedento e inquieto leitor.
O amante percebeu com assombro que alguém o observava por sobre o espaldar de sua poltrona. Alguém havia se esgueirado pela sua casa, assim como uma astuta serpente pronta para dar o bote.
Em fração de segundos, Paulo levantou-se em pânico, com o terror estampado em suas pupilas dilatadas. Tinha a respiração rasa a medida que sentia pequenas e frias gotas brotarem por sobre a pele de suas têmporas latejantes. Sem tempo para pensar, virou-se bruscamente, recorrendo à sua reluzente adaga guardada na gaveta próxima. Deu um passo para trás e suas mãos tremiam.
Por sobre a baixa luz da lua que adentrava aquele escritório, banhado pela penumbra de um abajur e pela escuridão do pavor, Paulo pôde enxergar um ameaçador sorriso desenhar-se no rosto daquele corpulento rival, já em seu encalço.
Um marido traído e incontrolável destilava ira, encarando agora e finalmente,
O amante.
Talvez Paulo tenha escrito seu próprio final...
Ou quiçá ele jamais tenha terminado de ler aquele livro, correndo, a cada linha, para os braços de um trágico destino.
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O Amante
Short StoryQual o limite entre ficção e realidade? Neste conto veremos como um romance pode se tornar um verdadeiro caso de suspense transpassando as barreiras da ficção. História originalmente postada no website Wattpad e no Nyah!Fanfiction. PLÁGIO É CRIME. D...