Voyeur?

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Thiago sabia que provavelmente estava cometendo uma completa estupidez. Mas já era sabido que tinha muito mais iniciativa do que juízo.

A fresta que abriu na porta do quarto só tinha espaço para que um de seus olhos pudesse espiar o lado de fora e sua mão agarrada firmemente a maçaneta nem mesmo tremia, ainda que fosse um bom momento para fazê-lo.

Os barulhos do lado de fora do quarto eram insistentes e ainda que os tivesse ignorado o máximo que pode, eles se tornaram violentos demais nos últimos minutos. Era difícil dizer o que acontecia no corredor mas tinha certeza que os sons que ele ouvia no momento eram de uma luta acirrada.

Thiago não era o tipo de pessoa que arrisca qualquer coisa para sanar a própria curiosidade. De fato, ele tinha um bom autocontrole quando se tratava disso. Porém a sensação de urgência que o levou até a porta de madeira era impossível de ignorar.

Algumas das piores hipóteses passaram por sua cabeça no seu trajeto até ali, a ideia de que um de seus amigos pudesse estar encrencado era pouco provável, mas não impossível. E apesar da chance pequena, ele preferiu tirar a dúvida com os próprios olhos, ao menos para que pudesse dormir em paz essa noite.

Porém a cena que o esperava do outro lado da porta tiraria seu sono por todos os motivos errados.

As pálpebras se ergueram um pouco mais enquanto os lábios se separavam em uma perfeita expressão de surpresa quando as pupilas captaram a imagem. Ela foi aos poucos sendo processada pelo cérebro do jornalista, que primeiro identificou os fios brancos e longos, a pele acinzentada, as roupas características... para que no momento seguinte, assim como uma folha sendo rasgada, a imagem fosse despedaçada diante de si.

Um suspiro grosseiramente interrompido pelo choque quase o fez escancarar a porta precipitadamente antes que ele percebesse que a imagem a se despedaçar se resumia apenas a roupa, que fora arruinada por uma garra afiada e horrenda que se esticava para atacar o homem no corredor.

A manga direita inteira da blusa que o luzídeo usava despencou, deixando boa parte do peitoral, inesperadamente, esculpido do homem a mostra, podendo ser apreciado por não mais do que alguns segundos antes que sangue cobrisse a pintura, mostrando que de fato, não só o tecido fora danificado no golpe.

Um grunhido de dor soou na voz conhecida, que apresentava os quartos e as regras a serem seguidas a não muito tempo atrás. Os músculos do bíceps exposto tensionaram com a dor, e podia ver como cada movimento exigia uma boa resistência do homem que agora perdia sangue através do corte.

— Filha da puta... - Rosnou claramente irritado para a criatura que não perdia tempo em avançar na sua direção novamente, querendo aproveitar qualquer brecha que encontrasse.

Porém o mesmo impulso da criatura na direção do homem foi usado contra ela quando seu corpo esguio e retorcido foi capturado nos braços do outro, e em seguida jogado violentamente contra o chão. Ela claramente estava perdendo a luta agora.

Thiago nem mesmo respirava enquanto assistia a cena acontecendo a pouco mais de um metro de si, e ainda que não estivesse planejando presenciar nada daquilo quando se levantou da cama, agora se sentia um tanto grato por poder ser um expectador secreto do ocorrido.

Jogada no chão e vulnerável ao próximo golpe, a criatura se limitou a grunhir horrivelmente enquanto arranhava as pernas perto de si. Mas a ação quase não demonstrou resultado, uma vez que o homem ignorou completamente a dor enquanto erguia uma espada curta e curvada, para no momento seguinte, cravar a lâmina larga no peito da criatura, que não parou de se debater, agoniazando até que o luzídeo, com algum esforço, puxasse a lâmina para cima, separando a criatura em duas partes.

A cena era horrorosa e o tanto de lodo e sangue no assoalho era digno de um filme de terror. Porém o homem diante do corpo inerte que aos poucos se desmanchava e sumia, não parecia preocupado com a violência explícita, uma vez que nem mesmo sabia estar sendo assistido.

Deu alguns passos pra trás, ofegante pelo esforço, pescando de dentro do bolso da calça um tecido, que Thiago pode reconhecer como uma luva de pano simples e enrolado nela, um frasco com um cristal verde brilhando fraco.

Apoiando-se na parede, o hoteleiro finalmente teve algum sossego, o sol já estava pra nascer e esse provavelmente seria o último monstro com a qual teria que lidar naquela noite. Já com a luva em uma das mãos, segurando o cristal verde contra o corte em seu ombro, levou a mão livre para o outro bolso da calça, buscando de lá um cigarro que aparentava ser um tanto... artesanal.

Ele claramente não era parecido com os demais tipos que se encontra na bancada de um mercado qualquer. Tinha sido enrolado na camada de seda a mão e o conteúdo dentro dele era de caráter duvidoso. Mas o homem que agora largava o próprio corte por um momento apenas para que pudesse acender o cigarro com um cristal vermelho parecia bem acostumado com o que tinha em mãos.

Thiago tinha noção que já havia passado da hora de parar de espionar o hoteleiro. Era evidente que ele não mais precisava de ajuda e os barulhos que antes o serviam de pretexto já haviam cessado, quase como se nunca tivessem existido diante do silêncio que agora preenchia o corredor.

Não fosse pelo baixo som do outro soprando a fumaça do cigarro, seria fácil constatar que nenhuma alma viva residia nos corredores naquele momento. Mas até o pacífico silêncio foi substituído quando o som de tecido se ragasgando voltou a ser ouvido.

O trapo que um dia fora uma blusa foi tirado do corpo do luzídeo sem dificuldade alguma. Não mais do que alguns centímetros de tecido da barra haviam sobrado para manter o restante da peça ainda preso ao seu corpo, e não foi necessário mais do que um puxão dos dedos para que ele rasgasse o restante do tecido esfarrapado e manchado de sangue. Expondo agora completamente o torso masculino e bem trabalhado do rapaz no corredor.

Suspirou no que parecia decepção ao olhar para o pano em sua mão, o jogando por cima do ombro, iria se desfazer daquilo depois de terminar seu cigarro.

O som da porta fechando não foi sutil o suficiente para passar despercebido pelos ouvidos atentos, que direcionaram o olhar para a porta agora fechada. Não tinha a menor dúvida de que realmente a ouvira fechando, ainda que não tivesse capturado tal cena com os olhos, mas ainda assim se questionou se não estava alucinando. Afinal aquele era o quarto da pessoa que ele menos esperava se dar ao trabalho de desobedecer a regra de não checar o corredor, dentre os curiosos novos visitantes do hotel.

Passou alguns segundos se perguntando o quanto o rapaz ignáro poderia ter visto até aquele momento, olhando para o cigarro nas próprias mãos e em seguida para o peito desnudo, como quem calcula prejuízos de um vazamento de imagens confidenciais. Talvez aquilo fosse lhe dar trabalho amanhã, mas estava exausto demais para pensar a respeito.

Do lado de dentro do quarto, o jornalista se fazia uma gama enorme de questionamentos. Dentre eles, o que mais se destacava certamente era:

"Eu virei um voyeur?"

Em qualquer outro momento, a frase seria motivo de boas risadas, exatamente por configurar um questionamento tão absurdo do ponto de vista dele próprio. Mas diante do irrefutável argumento que tinha bem ali, no meio de suas pernas, ele nem conseguia rir.

Não sabia se deveria se preocupar mais por ter ficado excitado espionando alguém, ou com o fato de esse alguém estar partindo a cabeça de um monstro horrendo em dois no momento em que foi espionado.

A única certeza que tinha era que não conseguiria dormir com o grande volume de pensamentos em sua mente, que era proporcional ao volume em sua roupa íntima no momento. Teria que fazer algo a respeito daquilo e com um milagre, talvez ele ainda salvasse sua noite de sono.

InsôniaOnde histórias criam vida. Descubra agora