Capítulo I.

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Deitei-me na velha madeira do meu quarto; nem sempre foi meu, já passou por este colchão o meu irmão mais velho que a cada noite trazia uma rapariga diferente e posso jurar que algumas das molas partidas são devido à força exuberante que ele opta por colocar no ato do amor. Já passou também o meu primo Romeu, que veio estudar para Lisboa e não tinha outro sítio onde ficar. 

Oh, o Romeu. Existem os primos que dão os conselhos mais loucos por serem os mais velhos e já terem experimentado tanta coisa e depois existe o Romeu que a cada história que contava tinha sempre uma parte ilegal com uma lição de vida à mistura.

Escusado será dizer que resto eu nesta casa, neste colchão com meia dúzia de molas partidas e nem metade das experiências dos antigos inquilinos.

Sempre pensei que a minha vida universitária me fosse abrir novas portas, novos mundos, novos conhecimentos, mas infelizmente ser uma rapariga esquizofrénica não me abriu janelas quanto mais portas.

Fui diagnosticada aos dezasseis anos com esquizofrenia simples depois de me ter trancado no sótão da casa e jurar à minha mãe que uma sombra me prendia lá em cima. Posso não me lembrar exactamente do momento onde essas sombras começaram a aparecer na minha vida. Ao início pensei que fosse a minha própria consciência a falar comigo, sabem? Como quando vão na rua e têm tendência a pisar apenas os quadrados pretos ou brancos, desejando fortemente que o vosso pé caiba inteiro naquele pedaço de tinta. Essas sombras apareciam-me como pessoas que me ordenavam a fazer um certo tipo de coisas menos próprias. 

Se o meu secundário estava a ser dos melhores anos da minha vida, rapidamente se tornou num dos piores. Toda a escola ficou a saber que havia uma nova doidinha pelas ruas de Lisboa. As minhas notas caíram de uma ravina e acabei por permanecer mais um ano a terminar o meu curso de Ciências Socioeconómicas. 

Foi nesse mesmo ano que a minha vida tomou um rumo diferente, acabei por seguir algo que nunca antes me imaginaria a seguir, Filosofia.
Venho de uma família de médicos, empresários, pessoas habituadas desde cedo a gerir o seu dinheiro, a ter sucesso na vida. Talvez tenha sido um dos motivos que me levou a entrar em Economia no secundário, a pressão colocada pelos meus pais.

Felizmente reagiram bem à minha mudança e apoiam-me em qualquer decisão que tome. Ao início revoltava-me, questionava-me se era simplesmente um sentimento de pena gigante que tinham para comigo, "coitada" é uma palavra que não suporto. Depressa deixei esse pensamento de lado e comecei a olhar para os meus pais como as pessoas que eles realmente são, uns ótimos pais.

Carla Barros, nome de solteira. Oh, a Carla. A mãe que se superou a si mesma, que encontrou forças que não conhecia quando aos vinte e um anos se viu fora de casa e grávida do meu irmão mais velho. O sonho dela era ter uma cadeia de hotéis onde todos os seus clientes conseguissem criar laços uns com os outros. Para ela, hoje em dia as pessoas esquecem-se de conviver umas com as outras, ainda por mais em espaços tão bonitos, tão amigáveis e aconchegantes como costumam ser os hotéis. Acabou por deixar de estudar e hoje em dia ajuda o meu pai na empresa.

Oh, o meu pai. De seu nome Duarte, como os reis. Ele sim, é pura realeza. Nunca conheci um homem tão interessado, preocupado, genuíno como este senhor. Quando conheceu a minha mãe estava na sua fase mais rebelde. Os meus avós tinham uma gráfica, "Oliveira e amigos", talvez a mais conhecida por Lisboa. O meu pai recusava-se a trabalhar lá na altura e andou fugido por uns bons meses. 

Conheceu a minha mãe durante a noite, numa praia. Eu não acredito no destino mas realmente há coisas estranhas. Seria mesmo eu que iria falar com um estranho que, estranhamente, passeava durante a noite à beira mar tal como eu. Hoje em dia brinco com a minha mãe, dizendo a frase que todos os pais dizem "Não se fala com estranhos, mas se falares engravidas passado cinco meses."

Rapidamente o meu pai voltou a trabalhar na empresa da família e a minha mãe foi viver com os meus avós paternos e os meus tios. Hoje em dia o meu pai conseguiu dar a volta por cima e possuí uma das maiores gráficas de Lisboa, se não de Portugal. A minha mãe é uma espécie de assistente, mais como o seu braço direito.

É complicado ser a única assim mais para o estranho numa família tão bem sucedida, normal e desenrascada. Continuo a achar que a cegonha se enganou na morada, para meu bem, claro. 

Escusado será dizer que parceiros amorosos foi algo que nunca se atreveu a passar no meu caminho. Eu tenho noção que não sou o maior monstro à fase da Terra, já houve momentos em que assim me senti, claro, mas em geral posso dizer que a minha auto-estima está a ser bem trabalhada. Definitivamente os rapazes são de outro planeta, assim um bem longe, mas bem longe do nosso; onde usarem os nossos corações é o pão de cada dia. 

Talvez possam notar algum rancor em mim e a verdade é que há. Tomás, 9º ano. Era um geek e fazia-me sentir a rapariga mais especial de Lisboa e arredores. Quando ainda era uma "rapariga normal", o Tomás fazia-me lanches de sandes mistas com um bom copo de leite branco, víamos a nossa série favorita (CSI como é óbvio) e falávamos de como em dez anos íamos ser os melhores amigos e ter um apartamento em Nova Iorque. Eventualmente os meus sentimentos por ele acabaram por subir de patamar e tinha bastante gente conhecida que achava o mesmo, mas assim que fui diagnosticada o Tomás afastou-se de mim. Não o censuro, foram tempos complicados. 

Mas bem, aqui estou eu no segundo ano de faculdade e não com muitas histórias para contar (okay, nenhuma) mas daqui a duas semanas a minha vida pode mudar. Vou ter uma rapariga italiana em Erasmus na minha própria casa! É mais nova, está a acabar o secundário, portanto vem terminar o 12º ano em Lisboa. Itália sempre me fascinou e ter a possibilidade de ouvir histórias e muito mais, de uma cidadã realmente italiana, deixa-me mais que feliz. Finalmente uma boa notícia e algo para estar ansiosa.

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⏰ Última atualização: Sep 14, 2020 ⏰

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