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Naquela estrada de todos os dias, eu voltava para casa no meu carro mas nunca tinha visto uma obra de arte em carne e osso, duma pele cristalina, cabelos castanhos presos num coque de bailarina. Segurava a bolsa de lado, ereta, como se posasse pro seu artista. Mal sabia eu que começava a bagunça na minha vida, observar essa pintura, me lambuzar com as tintas de vários tons de sangue, me atravessar no quadro...

No ponto de ônibus olhava de um lado a outro. A calma dela exalava na brisa fria, chegando a um ponto de se tornar assustadora, pálida.

Fui embora, estava tarde, minha mulher já mandava mensagem. Deixei o carro no estacionamento e entrei para falar com minha mulher e meus dois filhos gêmeos que naquele tempo tinham um ano. Nos abraçamos e podemos cear um lanche antes de deitar. Eu amava, mais que tudo, minha família. E ainda amo, mesmo que até hoje ninguém venha me visitar.

E foi assim que todas as vezes que eu voltava para casa, via aquela bailarina no banco do ponto de ônibus. Talvez esperasse toda noite por algum namorado, um noivo, um marido...

O problema cresceu nas próximas semanas, quando ao chegar em casa, passava pela minha mulher e meus filhos, indo direto pro quarto tomar banho e deitar. Quem era aquela mulher? A única coisa que eu sabia dela era que fazia balé. A imagem dela rodopiava, piscava, pintava na minha frente. Abria os olhos, sumia em fragmentos, fechava e voltava a vê-la pintada no quadro, como da primeira vez.

O hospital me consumia, e no momento minha rotina fenecia a cada falha. Eu não estava delirando, sabia disso, podia ser o cansaço, mas eu achava que estava bem. Será que um médico não pode diagnosticar a própria doença ou está seguro da sua própria saúde? Complicado.

Inesperadamente ansiava voltar do trabalho, vê-la no banco... Quando ela dirigia um olhar sem preocupação na minha direção, logo desviava, baixava a cabeça e eu seguia meu rumo, sem saber mais como agia.

No entanto no outro dia decidi parar meu carro na esquina para saber o que tanto e por quem esperava. Só sabia que ela mexia comigo. Meu coração se preparava sempre que eu chegava perto daquele ponto. E ela estava nem aí pro perigo das ruas. Eu me apaixonava pela coragem dela, pelos problemas que me causava...

Uma vez, atravessei a noite bebendo, esperando a oportunidade. Lembro que eu me fazia várias perguntas e me respondia ou com que eu esperava ou com o que podia acontecer. Horas mais tarde, abri os olhos pela claridade do sol atravessando a janela e a vodca ensopava minha roupa e o banco do carro. Eu não lembrava de nada e entrei num dilema entre voltar para casa ou pro trabalho. Meu dois grandes problemas. Olhei no relógio, eram oito e meia da manhã, minha mulher já teria deixado João e Paulo com a babá e fora trabalhar. Ao olhar pelo retrovisor externo, o banco do ponto de ônibus estava vazio. Liguei o carro e fui embora. Precisava de banho. Digo a vocês que aquela bailarina escondia alguma coisa e esse mistério estava dentro de mim, pode acreditar.

Chegando em casa desabei na cama depois do banho com a toalha ao redor da cintura. Antes de fechar os olhos, dei um salto lembrando do celular, e peguei no bolso da calça para explicar a Marcela o que tinha acontecido. Tentei mentir antecipadamente, mas o celular descarregou. Arremessei-o ao meu lado. Meus olhos apagaram.

Mais tarde acordei ouvindo vários sons que eu não consegui decifrar. Acordei atordoado sentando na cama, preocupado com as horas passadas. Marcela falava alguma coisa com a babá, no celular. E virou pra mim, num olhar semicerrado, um rosto tenso, só eu sei o que significa isso. Perguntou bem mansa, artifício pensado para depois atacar de vez.

- Onde tava?

- Vou trocar de roupa. - falei.

- Eu fiz uma pergunta.

A Bailarina do Ponto de ÔnibusOnde histórias criam vida. Descubra agora