Estranhamente Agradável

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  Jackeline Moreira com certeza não era como outras moças, tinha um jeito peculiar. Apesar de sua bela pele negra e seus lindos cabelos cacheados, estava sempre com roupas escuras: um All-Star preto (às vezes um par de botas), calça jeans preta ou azul, moletom preto para dias frios e amenos e camisetas, de várias bandas, à mostra nos dias quentes. De vez em quando usava um batom preto e um lápis de olho, mas não era muito chegada a maquiagens. Adorava rock de todos os tipos, mas nada para ela era mais agradável que The Who, não era à toa que tinha todos os álbuns em CD. Além de ouvir música, também gostava de ler, desenhar e fotografar. Sua mochila estava sempre com livros, cadernos, sua câmera e seu binóculo. Pelo fato de ter muita habilidade com fotos, foi contratada para ser fotógrafa de um jornal de Guainumbi da Serra, a "Folha de Guainumbi".
  Pelo comportamento introvertido e meio obscuro, possuía poucos amigos. Um deles, Nelson Oliveira, também trabalhava no jornal, editando as matérias. Sempre conversavam no início do expediente, e não foi diferente naquela manhã de quinta-feira:
  - Bom dia, Nelson! Qual é a boa? - disse Jackeline, já se ajeitando em sua mesa.
  - Bom dia, esquisita! Parece que você vai ter um pouquinho mais de trabalho essa semana.
  - Por quê?
  - O motivo não sei, mas o patrão disse que quer falar com você.
  - Deve ser alguma matéria especial. - comentou ela, dirigindo-se ao gabinete de Gilberto Santos, o dono da Folha de Guainumbi.
  Chegando lá, o chefe pediu que ela entrasse. A moça se sentou e ele começou a falar o que planejava:
  - Bom, minha jovem, nós temos em mente uma matéria que poderá ser bastante rentável pra nós, se ela der certo, é claro. E não há ninguém melhor que você, com incríveis habilidades de espionagem, para coletar as informações que precisamos.
  - E sobre o que seria essa matéria?
  - Não sei se sabe, mas apareceu um cara aí na cidade, um tal de Basílio Freitas, que parece agradar todo mundo que vê pela frente. Não há ninguém que reclama do que ele fala, do que ele escreve, do que ele pinta, do que ele cozinha e de qualquer outra coisa.
  - Ouvi falar um pouco, mas como será que ele consegue tudo isso?
  - Não sabemos. Por isso, queremos que você investigue tudo que está por trás dessa história. Amanhã ele estará em uma exposição de arte no Bairro das Cerejeiras, eu autorizo você a ir lá conhecê-lo e começar seu trabalho.
  - Ok, pode deixar comigo.
  Jackeline saiu da sala do patrão e foi para sua mesa. Lá, Nelson fez pergunta sobre o que Gilberto queria:
  - O que foi resolvido lá, colega?
  - Eu fui escolhida pra investigar um cara chamado Basílio, que parece conquistar todo mundo em tudo que faz.
  - Ah, eu já ouvi falar dele. Dizem que ele é bom mesmo.
  - Mas sempre tem alguma coisa por trás. Não é possível alguém ser tão perfeito e agradável do nada.
  - E como você vai procurar vestígios de uma suposta enganação?
  - Espionagem, é claro. Por que acha que eu carrego uma câmera e um binóculo?
  - Se aos vinte e três já tá investigando todo mundo, aos quarenta já tá lá no FBI!
  - Deixa de bobagem, Nelson! - exclamou ela, rindo ambos em seguida.
  Continuaram a trabalhar, indo todos embora às cinco e meia da tarde. A fotógrafa, assim que chegou em casa, foi comer, escutar The Who, organizar algumas coisas do trabalho, jantar e depois dormir. Havia um longo dia de investigação pela frente.
Na manhã seguinte, acordou, tomou banho, tomou café da manhã e foi ao trabalho, a rotina comum dos demais dias. Após resolver algumas coisas no jornal, dirigiu-se ao Bairro das Cerejeiras. Eram duas e meia, e a exposição já havia começado. Era um grande salão, cheio de obras feitas por vários artistas lá presentes. Em um canto estava Basílio Freitas com seu quadro, tendo neste uma estrada retratada, com casas e pessoas, mas eram os traços que pareciam deixar aquela cena bonita. Jackeline ficou encantada, algo parecia prender seu olhar na obra, que era bastante agradável para ela. Enquanto admirava a pintura, o homem veio falar com ela:
  - Belo quadro, não é mesmo?
  - Sim, eu tenho palavras pra descrevê-lo.
  - Eu confesso que estava bastante inspirado no dia em que pintei. Esperei o momento certo pra captar a imagem perfeita pra retratar. Cada traço tem sua própria essência, por isso preciso esperar uma boa hora.
  A moça não sabia o porquê, mas a voz dele e o que ele falava pareciam tão confortantes, como se saísse música de sua boca. Tudo parecia deixá-lo cada vez mais agradável.
  - Você veio comprar algum quadro? - perguntou ele.
  - Não, eu vim fotografar a exposição. Trabalho pra Folha de Guainumbi.
  - Interessante. É muito bom divulgar trabalhos tão bons como esses.
  No momento em que Basílio saiu de perto e foi falar com outras pessoas, a fotógrafa teve uma sensação parecida com o despertar, como se estivesse dormindo há alguns segundos, mesmo lembrando de tudo que aconteceu. Aproveitou essa lucidez repentina para fotografar o quadro e seu autor.
  Ela foi olhar outros quadros para disfarçar, mas mantinha os olhos vivos no rapaz. Por volta das três e quinze da tarde, o viu sair pela porta dos fundos e, sem pensar duas vezes, começou a segui-lo. Ele foi direto ao estacionamento, carregando uma mochila cinza. De traz de um carro, Jackeline viu-o pegar uma pequena garrafa no bolso externo, beber o líquido que estava lá, deixá-la cair no chão e entrar no seu carro. Assim que ele saiu, a moça rapidamente pegou a garrafinha e correu para pegar uma bicicleta que estava ali perto, afim de seguir o homem novamente.
  Basílio subia rua, fazia curvas, descia rua, e a fotógrafa continuava no seu rastro. A uns dois quilômetros do local do evento se encontrava a casa dele. O moço abriu o portão e o fechou assim que o carro já estava lá dentro. A moça viu tudo por trás de uma árvore na outra calçada. Em seguida voltou ao serviço. Lá, Nelson foi o primeiro a perguntar sobre a missão:
  - E aí, como foi o negócio lá?
  - Foi normal. Até que eu consegui algumas evidências.
  - Como era o tal cara?
  - Parece de longe um bom rapaz, mas eu senti algo esquisito quando o conheci. Primeiramente, o quadro que ele expôs parecia lindo, mesmo sendo uma cena simples, de uma rua interiorana, mas eu me admirei muito com ele, tive vontade até de levar pra casa. Depois ele veio falar comigo sobre como pintou o quadro, também elogiou o trabalho do jornal, mas ele falava de um jeito tão atraente, dava vontade de ouvi-lo o dia inteiro. Só que depois dele ter saído de perto eu me senti como se tivesse acabado de acordar, como se tudo fosse um sonho, mas eu sabia que era real.
  - Um quadro bonito, um homem legal e atraente e você parecendo acordar, isso tudo parece não fazer sentido. É muito estranho.
  - Fica ainda mais com isso. - disse ela, entregando a garrafa que encontrou. - Ele deixou isso cair antes de ir embora. Eu o segui logo depois.
  Nelson analisou a garrafa e coçou a cabeleira loira, confuso com o que havia no rótulo:
  - Isso parece a sombra de uma ave em pé, na frente da Lua. Ainda têm essas letras, C-R-S-M, a data de hoje, 13 de setembro de 1996, e um horário indicando 22h30. O que será que significa tudo isso?
  - Não sei, mas desconfio que todo esse jeito dele tenha uma origem meio obscura, e esse negócio que ele toma deve ter alguma coisa a ver.
  - Por que não espiona ele nesse horário e vê o que acontece?
  - É isso que eu vou fazer.
  Foi exatamente o que a moça fez. Depois de voltar do serviço às cinco e meia, ficou em casa até quinze para as dez, o horário em que saiu, equipada com lanterna, câmera e binóculo na mochila. Instalou-se atrás daquela árvore, no terreno baldio em frente à casa de Basílio. Parecia estar tudo tranquilo, até que, às dez e nove, o homem vai à garagem, abre o portão, põe o carro na rua, fecha o portão, entra novamente no carro e sai. De súbito, Jackeline corre atrás, mas ficando mais distante devido ao cansaço. Numa bifurcação à frente avista um táxi passando, para-o e entra. Por sorte não havia passageiro.
  - Siga aquele carro preto. - disse ela ao motorista.
  - O que é isso? Uma perseguição? Pois saiba que não sou bom nessas...
  - Rápido! - gritou, interrompendo a fala do moço. Saíram em seguida, a uma certa distância do carro de Basílio.
  Ele conduziu boa parte pelo perímetro urbano de Guainumbi da Serra, até tomar uma estrada de terra que passava em meio à mata. O taxista manteve uma distância um pouco maior, para que o alvo não percebesse a perseguição. Seguiram uns dois quilômetros nesse percurso. O carro preto parou no fim da rua e Jackeline pediu que o táxi parasse a uns setenta metros de distância.
  - Aqui. - disse o motorista, entregando um cartão - Me liga caso tenha dificuldade em voltar.
  A fotógrafa agradeceu, pagou a viagem e começou a perscrutar Basílio discretamente assim que o táxi se foi. O homem passou alguns minutos dentro do carro, talvez esperando os outros carros que chegaram em seguida. Somavam uns nove, sendo quatro trazendo dois homens cada. Saíram para fora catorze homens, incluindo o alvo da investigação, que vestiram sobretudos pretos e encapuzados, acendendo tochas e seguindo enfileirados por uma trilha no mato. Jackeline registrara cada momento em sua câmera. Seguiu o rastro da luz que carregavam.
  Eram quase cento e vinte metros floresta adentro. A moça escondeu-se entre as moitas de um ponto com visão privilegiada do lugar onde os sinistros senhores se reuniram. Primeiramente, jogaram as tochas no centro, acendendo uma grande fogueira, que iluminou toda aquela clareira. O que parecia o líder da estranha seita estava perto do fogo, dentro do círculo feito pelos outros treze e por uma estátua, essa sendo uma grande ave rajada sobre um tronco, com olhos grandes, ereta e com o pequeno bico voltado para o céu. Lembrava bastante a silhueta da garrafa. Obviamente foi fotografada.
  - Irmãos, - disse o líder, em frente ao ídolo - unimo-nos novamente na presença de nosso grande Urut. - ("ó, poderoso Urut!", entoaram em coro os adeptos) - Em sua grande bondade encontremos proteção e ao seu poder soberano façamos nossas preces. - ("protegei-nos e atendei-nos, ó, magnífico e benevolente Urut!") - Ó, irmãos, tragam vossos pedidos, recebam as bênçãos de nosso misericordioso Urut. - ("ó, fascinante Urut!").
  O ritual foi para outra fase: o líder chamava cada adepto para diante da fogueira, começando pelos que estavam à esquerda da estátua e continuando a ordem do círculo. Cada um jogava no fogo um papel com algo escrito, depois de certo silêncio, o líder dava um recado em primeira pessoa e com a voz diferente, como se outro alguém estivesse nele, talvez o próprio Urut. Em seguida tirava do fogo uma daquelas garrafas e entregava ao adepto chamado, que retornava ao seu lugar na roda.
  Enfim chegou a vez de Basílio, o quinto da fila. Jackeline focou a câmera no centro da roda, obtendo uma imagem bem nítida. Um momento importante desses não merecia passar sem registros.
  - Chegue mais perto, ó, irmão. Jogai ao fogo divino de Urut teu pedido. - disse o líder ao pintor, que logo fez o que lhe foi ordenado.
  Houve aquele silêncio e logo Urut falou com o homem através do anfitrião:
  - Ó, irmão! Receberás tua virtude pessoal e assim terás atendida a prece. Hei de receber tua oferenda em troca deste favor.
  Basílio então recebeu outra garrafa daquela, voltando para seu lugar no círculo. O mesmo procedimento se repetiu com os demais oito adeptos, assim iniciando uma nova fase do ritual. O líder, já livre da posseção de Urut, ordenou aos demais a lançarem suas oferendas ao tal espírito, que resumiam-se a frutas, joias, amuletos, algumas bebidas e certas espécies de ervas e flores. Por fim, cada um pega no bolso do próprio sobretudo um livro, abrem-no e começam a entoar uma canção. Grande parte dos versos eram saudações ao ídolo, mas haviam alguns que faziam menção a um tal "dia sagrado" e pedindo proteção contra "inimigos de pena branca". Enfim encerrou-se a reunião com todos pegando um pano grande e escuro (antes amarrados no sobretudo como se fosse parte dele) e usando-o para apagar a fogueira.
  Com toda a floresta novamente escura, levemente iluminada pelas chamas das catorze tochas, seguiram de volta pela trilha os homens encapuzados. A fotógrafa esperou eles saírem para poder registrar o lugar de perto, especialmente a imagem de Urut. Ao sair da floresta, caminhou sozinha, com a lanterna ligada, pelos dois quilômetros daquela estrada escura, até encontrar um orelhão na primeira rua asfaltada e chamar o mesmo táxi, quase dando meia-noite e meia. Chegou exausta em casa, guardando suas coisas, trocando as roupas e indo rapidamente para a cama.
  Na segunda-feira nem foi ao serviço, foi bem cedo à Biblioteca Municipal, afim de encontrar algo a respeito daquilo que havia visto na última sexta-feira. Jackeline não tinha certeza de suas suspeitas, mas acreditava que se tratava de algum tipo de sociedade secreta, envolvida com magia ou algo do tipo. Passou quase uma hora procurando um livro que falasse sobre, até que achou um na prateleira dos fundos. Era um exemplar de "As Ordens Ocultas da América Latina", escrito por Prudêncio Baptista. Pegou-o e sentou-se para procurar o que queria, com base nas observações que anotara e nas fotos que fizera. Folheou-o bastante, analisando cada ordem nele descrita, umas bastante detalhadas e outras nem tanto. Certas vezes encontrava algumas características compatíveis ao que buscava, mas alguns aspectos presentes anulavam suas suspeitas. Passado uns minutos, encontrou um pequeno texto bem convincente, sobre uma tal "Sociedade Mãe-da-Lua":
  "Ordem mítica por muito tempo desconhecida, começando a ter relatos de sua existência a partir de 1952, com as primeiras aparições no interior de Minas Gerais, aparecendo posteriormente nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Uma ave noturna chamada mãe-da-lua (também conhecida como urutau) é que origina o nome da ordem, sendo também a representação do espírito que cultuam: Urut. Parecem se reunir em matas afastadas, durante a noite, em dias que variam entre segunda, terça e sexta-feira (seu calendário é ainda desconhecido). Pouco se sabe sobre seus rituais, afirmando-se que usam vestes escuras, reúnem-se em volta de uma fogueira e reverenciam grandes ídolos de madeira, possível representação de Urut. Desconhece-se outras características dessa ordem, já que muitos grupos desapareceram ao serem descobertos, e devido à recusa de antigos adeptos a darem depoimento."
  Era a única coisa escrita sobre a ordem da qual Basílio fazia parte. Talvez, em 1971 (quando o livro foi lançado), se sabia muito menos do que ela havia visto. Jackeline voltou às prateleiras, na esperança de encontrar algo sobre o autor, já que o livro não dizia nada sobre ele. Nada adiantou: não havia nenhum livro falando sobre o tal escritor. Ainda curiosa em saber sobre ele, a fotógrafa decide conversar com a bibliotecária:
  - Com licença. Aqui tem algum livro que fale sobre Prudêncio Baptista?
  - Prudêncio Baptista?... Hum, deixa eu me lembrar... - a mulher ficou pensando um instante, deu uma olhada num caderno que havia em sua mesa, logo respondendo:
  - Olha, aqui na biblioteca só temos esse livro sobre ordens ocultas que está com você.
  - Que pena! Eu precisava saber mais sobre esse autor.
  - É alguma pesquisa?
  - Mais ou menos isso. É pro meu serviço.
  - Acho que posso te ajudar. Se não me engano, no Bairro dos Lopes mora um senhor que parece ter conhecido esse tal de Prudêncio. Acho que é Joaquim o nome dele.
  - Isso ajuda bastante. Vou procurá-lo. Muito obrigada pela informação.
  Assim saiu, indo para aquele bairro rural afastado, nos confins setentrionais da cidade. Pegou um ônibus que ia até lá e, descendo dele, perguntou na vizinhança se alguém sabia onde o homem morava. Não demorou nem quinze minutos para descobrir, logo estando em frente à casa dele. Era uma casa simples, pequena, com a pintura meio descascada, porta e veneziana de madeira, umas flores plantadas no peitoril e um quintal minúsculo, com um curto caminho cimentado até o portão. Como não havia campainha, resolveu bater palmas. O idoso logo sai para ver quem lhe chamava.
  - O senhor que é o Seu Joaquim? - perguntou Jackeline.
  - Sou sim, senhorita. Posso ajudar em alguma coisa?
  - Ouvi falar que o senhor conhece Prudêncio Baptista. Poderia me contar alguma coisa sobre ele?
  Joaquim emudeceu por um instante, foi abrir o portão e pediu para que ela entrasse, pois a conversa havia de ser um pouco comprida. Entraram na cozinha, a moça sentou-se, o velho lhe serviu uma xícara de café e indagou:
  - O que deseja saber sobre Prudêncio?
  - Eu estou investigando um caso que tem relação com uma sociedade mística, nisso achei algo sobre ela no livro "Ordens Ocultas da América Latina". Gostaria de saber mais sobre o autor, se ele é vivo, se é possível entrar em contato com ele e outras coisas, mas nem o próprio livro fala sobre ele.
  - Entendi. Pois bem, desde que era jovem, Prudêncio Baptista estudava história e publicava uns artigos sobre arqueologia num jornal em São Cristóvão do Vale, cidade de onde eu vim. Também se interessava por mitologia e espiritualidade. Eu trabalhava com antiguidades, o que me fez conhecer ele quando visitou minha loja. Estava atrás de livros sobre ocultismo, alquimia e coisas do tipo, e mostrando os manuscritos que eu tinha, passamos a conversar com mais frequência. Assim nos tornamos amigos.
  - O senhor sabe sobre como ele conseguiu informações pro livro?
  - Tudo isso começou em 1965, quando ouvimos diversos rumores sobre estranhos grupos que faziam rituais em certos lugares da cidade. Ele, que era fascinado por coisas míticas, logo reuniu uma equipe inteira pra investigar essas ordens. Eu também ajudei ele bastante, participando de espionagens e até entrando como infiltrado em algumas sociedades. Em 1967 ele teve a ideia de escrever o livro, viajando o interior do Brasil e pesquisando a sério esse assunto.
  - Vocês chegaram a conhecer a Sociedade Mãe-da-Lua, não é? Mas porque se tem tão pouca informação sobre ela?
  - Ai, essa teve um impacto grande na nossa amizade e na minha vida. Enquanto ele viajava a pesquisas, eu me infiltrava em algumas ordens que haviam em São Cristóvão e arredores. Eu dava um jeito de ser convidado, participava das reuniões, anotava tudo o que vi quando chegava em casa, e saía sem problemas depois de um tempo. Algumas descobriram o que eu procurava, mas não fizeram nada além de me expulsarem. Foi então que, em 1969, eu fui convidado a ser adepto da Mãe-da-Lua. Com a mesma naturalidade das outras vezes, aceitei. Não era muito diferente de outras sociedades que participei ou espionei. Tinha reuniões noturnas, reverenciavam um espírito, faziam oferendas e sacrifícios pra ele, entre outras coisas. Só que, em menos de um mês, descobriram que eu era infiltrado. Dessa vez não me expulsaram, foi pior: eu fui sentenciado a servir de sacrifício a Urut, que é o destino dos traidores dessa ordem. Sem outra alternativa, tive que abandonar as pesquisas e vir pra Guainumbi da Serra. Deixei com uns amigos de Prudêncio as análises que fiz, exceto as da Mãe-da-Lua, devido à insegurança em que eu me encontrava por causa dela. Eu morava bem perto do centro, lá no Jardim Samambaia, mas me mudei pra cá em 1976, depois de saber que essa sociedade se instalou aqui na cidade também. Prudêncio me visitou nesse mesmo ano, me deu um exemplar desse livro, conversamos bastante, ele dormiu aqui por uma noite, e, antes dele ir embora, dei pra ele as informações completas sobre a Mãe-da-Lua. Nunca mais o vi depois disso. Em 1979, veio a notícia de que ele desapareceu, decerto se envolveu em algum perigo, como eu fiz (talvez pior).
  - Uau! Não sabia que era uma ordem tão perigosa assim! Mas, já que o senhor tem tanto conhecimento sobre essa sociedade, creio que ajudará no caso que estou investigando.
  - Ajudo no que for possível. Que caso é esse?
  Jackeline contou ao velho sobre como entrou naquela missão, como conheceu Basílio Freitas, o que aconteceu na exposição, o que houve no estacionamento, as perseguições que fez (tanto a da tarde quanto a da noite), como foi a reunião no meio da mata, sobre sua ida à biblioteca e como descobriu aquele endereço afastado onde estava. Explicada a história, tirou da mochila aquela garrafa, mostrou a Joaquim e perguntou:
  - O senhor sabe o que significa essas letras no rótulo?
  - É a que você achou no estacionamento?
  - Sim.
  - Pois bem, na Sociedade Mãe-da-Lua, Urut oferece diversas virtudes aos seus adeptos, em troca de oferendas e sacrifícios. Existem quatro níveis hierárquicos na ordem: noviços (só se comunica com Urut ao consultar um conselheiro ou sacerdote), ouvidores (recebem mensagens diretas de Urut), conselheiros (conseguem encarnar o espírito) e sacerdotes (conseguem invocá-lo em sua forma física e produzirem sozinhos todas as virtudes). Cada um desses níveis tem permissões específicas quanto às virtudes que podem usar. Eu, como nunca passei de noviço, só podia usar as de felicidade e paixão (essa me ajudava a encontrar a pessoa amada). Pelo o que vejo, esse tal Basílio já chegou ao nível de conselheiro, já que tem a virtude do "carisma" (C-R-S-M).
  - Mas o que são essas virtudes? O que elas realmente fazem? - indagou a moça, um pouco confusa.
  - Elas são poções que, ao se beber, produzem efeitos diferentes nas energias interiores das pessoas, nas emoções, no raciocínio e nas energias que transmitem a outras pessoas. Por exemplo, se Basílio bebe um pouco da virtude do carisma, ele se tornará uma pessoa que atrai as outras com mais facilidade, fazendo com que admirem-se mais com o que diz e faz. A duração desse efeito depende da quantidade ingerida. Uma colher de chá é a dose recomendada, que dura cerca de uma hora, já quantidades maiores duram bem mais tempo. Só que quanto maior a dose, mais evidentes os efeitos se tornam, o que causa impacto até nas pessoas próximas a quem bebeu, como ocorreu com você, que pareceu ter saído de um sono depois que o rapaz saiu de perto. Com certeza ele havia ingerido mais do que devia. Nisso, ele deve ter pego outra garrafa no dia da reunião, aproveitando para esvaziar essa aí na mesma data, já que era a que Urut combinou pra renovar a virtude.
  - Agora tudo faz sentido! As coisas que ele faz, a garrafa, o ritual, tudo explica esse grande quebra-cabeça! - exclamou Jackeline, fazendo uma pequena pausa e logo voltando a falar - Mas, se eu desvendar todos os segredos de Basílio em rede municipal, eu vou ser perseguida pela Mãe-da-Lua?
  - Pode ficar despreocupada, pois o único que deverá fugir é ele próprio, já que os sacrifícios são feitos, em sua maioria, com membros irresponsáveis que põem em perigo o sigilo da ordem. Mas, uma hora ou outra ficariam sabendo dos abusos dele com as virtudes.
  - Uma última dúvida: o que quer dizer "dia sagrado" e "inimigos de pena branca", que aparece em uma das canções?
  - Ah, isso tem a ver mais com a parte histórica da Sociedade, creio que não vai incluir nada no caso. Basicamente falando, o "dia sagrado" é a sexta-feira, quando acontece as reuniões mais importantes, inclusive as de invocação de Urut. Existe um calendário bem complexo de eventos que acontecem periodicamente nesse dia. Já os "inimigos de pena branca" são os membros da Sociedade Anu-Branco, uma ordem com dogmas inversos aos da Mãe-da-Lua, ambas tendo como um de seus objetivos extinguir a rival. É uma guerra que vem acontecendo desde o início do século, quando as duas surgiram. É uma longa história, mas essa é a base de tudo.
  Após Joaquim ter falado o que sabia, a moça se levantou, agradeceu imensamente as informações, que passou o tempo inteiro anotando, despediu-se, saiu, foi ao ponto de ônibus e, em menos de meia hora, já estava em direção ao centro de Guainumbi da Serra. Resolveu passar no jornal, mesmo faltando menos de uma hora para o fim do expediente. Foi logo falar com Nelson:
  - E aí, colega! Preciso de uma ajuda sua.
  - Achei que não viria hoje, Jacke. No que posso ser útil?
  - Você sabe qual é o próximo evento que o Basílio Freitas vai participar?
  - Deixa eu ver aqui, ouvi falar sobre algo esses dias. - disse ele, fuçando no computador por algumas dezenas de segundos - Achei! Ele vai participar daquele concurso culinário anual, que vai acontecer amanhã à tarde. Vai ter vários jornais e rádios lá, e, pelo que estão falando, a maior parte das apostas estão a favor dele.
  - Perfeito! Só que a Folha de Guainumbi vai lá pra mostrar outra face da história.
  - Não vá dizer que desvendou tudo em poucos dias!
  - Por que diz isso, seu loiro aguado? Minhas investigações ainda farão esse jornal crescer um dia.
  - Se você tá dizendo, quem sou eu pra contrariar? Passe então tudo pro Gilberto, temos pouco tempo pra desmascarar o farsante.
  - Era exatamente o que eu estava indo fazer.
  Chegando na sala do patrão, mostrou-lhe todas as anotações que fez naqueles dias e explicou alguns detalhes da história. Ele ouviu, leu, depois perguntou:
  - O que você pensa que devemos fazer, Jackeline?
  - Eu irei ao local do evento bem antes de começar, pra poder me infiltrar no camarim dele e sumir com a garrafa, assim ele não terá tempo de recarregar a virtude. Vocês vão com a equipe normalmente, assistem ao evento e esperam a vez dele apresentar o prato que fez, sem ter tomado a poção. Quando todos descobrirem que ele não cozinha nada, nós entramos e esclarecemos ao público os modos de trapaça dele.
  - Combinado. Vou reunir a equipe de reportagem e já vamos começar a organizar a matéria. Havemos de lotar as bancas. Ai, se não fosse você, Jackeline, pra trazer as melhores matérias, pra desvendar os casos mais difíceis! A Folha de Guainumbi estaria perdida!
  - Que nada! Só faço meu trabalho. Vou indo, pois amanhã o dia será cheio. Podem ficar com as anotações sobre o caso. Até mais.
  - Muito obrigado, Jackeline. Tchau, tenha uma boa noite.
  Foram todos embora, cada um ao aconchego de seu lar. A fotógrafa dormiu cedo, afim de monitorar cada passo do Freitas no dia seguinte, garantindo de que ele seria desmascarado.
  Eram dez e meia da manhã de terça-feira, a moça já estava equipada com seu binóculo em seu ponto de espionagem, em frente à casa do farsante. Já havia chamado Augusto, aquele motorista de táxi, que estava estacionado ali perto, de modo a facilitar e não atrasar a perseguição. Assim que o membro da Mãe-da-Lua saiu com seu carro, às onze e seis, Augusto e Jackeline o seguiram até o local do evento. Basílio entrou no estacionamento, já o taxista deixou a fotógrafa na entrada.
  - Muito obrigada, Augusto. Tem se saído um ótimo piloto. Pode ficar pra ver o espetáculo, se quiser. - disse ela, pagando a viagem.
  - Eu que agradeço, Jackeline, mas tenho um longo dia de trabalho pela frente. Juro que compro um jornal quando sair a matéria.
  - Está bem. Até mais, tenha um bom serviço.
  - Obrigado. Até outro dia.
  O farsante saiu do carro com a mochila, entrou numa porta aos fundos e seguiu por um corredor. A moça parou na porta, escondida atrás da parede, e observou-o falando com uma funcionária, esta pedindo para ele entrar na quinta porta à direita (talvez fosse lá o camarim dele). Foi logo até o fundo externo do edifício, para ver se encontrava a janela correspondente, ou seja, a quinta. Estava fechada, mas podia-se ver tudo que Basílio fazia através do vidro. Faltava um pouco menos de uma hora e meia para começar o concurso, obviamente era muito cedo para o homem ingerir qualquer dose da virtude.
  Passaram dez, vinte, vinte e cinco minutos, e o Freitas continuava no camarim. Certa hora outra funcionária do evento veio chamá-lo, e ele então saiu, fechando a porta, era hora de agir. Por sorte a janela não estava trancada, nisso, Jackeline abriu-a, pulou-a e foi direto para a cadeira onde o trapaceiro deixara a mochila. Ela se lembrava bem de onde era guardada a garrafa, abrindo o bolso externo, fechando-o depois de pegar a virtude e saindo com ela pela janela, também fechando esta. A primeira tarefa do dia estava cumprida: Basílio teria de competir sem a poção mística.
  Jackeline não chegou a ver ele voltando ao camarim. Agora, com a virtude guardada consigo, só lhe importava derrubar a coroa do enganador. Entrou no salão principal, onde ocorreria o evento, juntou-se à equipe do jornal e ficou aguardando o momento certo.
  - Conseguiu pegar a garrafa do sujeito? - perguntou Gilberto, que acompanhava pessoalmente o trabalho da Folha.
  - Está aqui comigo, inteirinha.
  - Mas alguém te viu lá dentro? - indagou Nelson, que também viera com o pessoal.
  - É claro que não. Ser sorrateira é base de muitos objetivos. - respondeu ela.
  O concurso começou. Havia uma plateia mais lotada que o estimado, com a grande maioria gritando o nome de Basílio Freitas. Não foi de se espantar que gritassem mais ainda quando o próprio foi chamado. Enfiado num avental e numa touca de cozinha, o homem não trazia no rosto uma expressão confiante, certamente por ter seus métodos de vencer totalmente aniquilados. Começaram, ele e os outros quatro participantes, a cozinhar simultaneamente, cada um preparando um prato optativo, que seria avaliado pelos dois chefs presentes. Tinham apenas uma hora para terminar.
  O tempo passava, Basílio cortava vários ingredientes, misturava tudo rapidamente na panela, todo nervoso e suando. Terminado o prazo, entregou uma sopa pouquíssimo sofisticada aos jurados, eles experimentaram e pediram para que ele voltasse ao seu lugar. Houve agitação a favor do farsante na plateia, mas não mais tão grande como no início. Passaram uns poucos minutos e os chefs começaram a comentar sobre os pratos. Avaliaram dois participantes primeiro, logo chegando sua vez. Foi uma grande derrota: seu prato não trazia inovação alguma, além de estar com muitos ingredientes crus e muito mal-temperado. A plateia começou um grande falatório, mas sem torcida alguma.
  - É a hora! Me empresta a garrafa, Jackeline, vou jogar as cartas na mesa. - disse o dono da Folha de Guainumbi.
  - Está aqui. Diga tudo que tem a ser dito.
  O patrão pediu o microfone emprestado, todos se calaram e se voltaram para ele, inclusive as câmeras de filmagem e os flashs.
  - Este homem é e sempre foi um mentiroso, um enganador, e hoje vocês vêem a prova disso: o fracasso que ele realmente é! Depois de dias investigando, nós da Folha de Guainumbi desvendamos como esse pilantra conseguiu fazer todo mundo se admirar com ele e com tudo que ele fazia. A resposta é isso aqui. - levantou a garrafa para o alto - Ele consegue essa poção numa ordem secreta destinada a rituais de magia, e toda vez que bebe isso, faz com que todos que estejam perto gostem do que faz. Mas hoje fomos mais espertos, pegamos dele esse frasco e fizemos com que mostrasse quem realmente é: um vigarista!
  Todos se chocaram no salão principal, inclusive as equipes de jornal, de rádio, os jurados e os organizadores do concurso culinário. Basílio pegou o microfone, tentou se explicar, porém foi imediatamente vaiado pela multidão. Profundamente constrangido, fugiu do local, jamais sendo visto novamente. Àquelas horas já devia estar ciente de seu destino na Mãe-da-Lua. No dia seguinte saiu a matéria, relatando o ocorrido no concurso, como as pessoas eram enganadas, como era a ordem da qual o homem fazia parte, também constando com algumas imagens feitas por Jackeline, inclusive uma da reunião na floresta. Esgotaram as vendas na mesma data, não sendo à toa o fato da notícia ter repercutido até nas cidades vizinhas.
  - É, essa notícia foi uma baita bomba, não há um nas ruas que não tenha comentado. Sinceramente, a sua contribuição pra edição de ontem foi incrível, Jacke. - comentou Nelson Oliveira, quase no fim do expediente de quinta-feira.
  - Concordo, foi uma grande aventura pra mim. Fiz coisas que não fazia ideia de que era capaz e deduzi coisas de forma que nunca vi antes. Eu, particularmente, gostaria muito de resolver um outro mistério tão desafiador quanto esse. - completou a moça, bastante sorridente e satisfeita.
  - A pena é que o grande nem te mencionou quando desmascarou o fulano.
  - Nem ligo. Eu faço esse trabalho porque gosto, pouco me importa se vou ter fama ou não.
  - Se você tá dizendo... - o loiro emudeceu por um instante - Se bem que existe um monte de gente famosa por aí que agrada uma multidão de fãs com qualquer coisa, não sei o porquê de procurar tanto mistério num caso desses.
  - Ninguém nasce perfeito, Nelson. Qualquer um que pareça ter perfeição infinita, sempre tem algo de suspeito. E, pra falar a verdade, as pessoas gostam mesmo é desses podres e segredos obscuros que esses ícones escondem, muito mais do que aquilo que eles fazem.
  - Tem razão.
  E mais um dia de trabalho terminava, com a típica rotina por voltar no outro dia. Todos foram para suas casas, e com Jackeline não foi diferente. Chegou em seu lar, tirou os sapatos, comeu algo, assistiu algumas coisas na TV e escutou um pouco de The Who antes de dormir:
  "Pick up my guitar and play
  Just like yesterday
  And I'll get on my knees and pray
  We don't get fooled again"

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⏰ Última atualização: Aug 12, 2020 ⏰

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